Eduardo Siebra, 13/05/14
Se parto da constatação filosófica
de que toda realidade é fenômeno (ou seja, toda percepção do mundo é mediada
pelos sentidos) como posso diferenciar o mundo "real" do mundo
"virtual", se essas duas realidades se me apresentam quase que com a
mesma verossimilhança? Ou seja, se as companhias de entretenimento conseguirem
criar um jogo de video-game tão convincente e realista, e tão profundo e cheio de
possibilidades que quase pudesse ser considerado um segundo universo, como eu
poderia dizer que a experiência de vida que eu tivesse dentro desse jogo seria
menos importante do que a experiência que posso ter no mundo?
Essa pergunta é traiçoeira, já
que não podemos conhecer a coisa-em-si do mundo. Se não sabemos qual é a suposta
essência da realidade, então aparentemente é vã qualquer tentativa de diferenciar
o mundo real das realidades-simulacro (jogos de vídeo-game e ambientes virtuais
de interação, por exemplo).
Ainda assim, arrisco dizer que
cada segundo da vida de um ser humano usado em jogos virtuais é um perigoso
desperdício. Video-games são uma espécie de entorpecentes para a mente humana
cujo princípio operante reside na nossa incapacidade de diferenciar um fenômeno
vivido no mundo de um fenômeno simulado – uma imagem gerada
digitalmente, por códigos binários, cujas características sensoriais em muito
se aproximam do que nosso cérebro registraria como um fenômeno real.
Esse é o mesmo fundamento da
arte: pela imitação do real, o homem é capaz de
provocar realidades imaginadas. Numa peça teatral, a representação dos atores tem toda a
aparência de uma situação real. A suspensão da descrença – que nos permite por
alguns instantes tomar como verdadeira a encenação – torna-se possível quando a
performance é boa o bastante para nos convencer que os gestos e falas são tão
reais quanto os da vida. O mesmo se diga dos filmes, cujas imagens são um veículo de verdadeiros universos imaginados. Algumas obras de arte são tão
boas que chegam a ser até mais verossímeis que a realidade – muita vezes
vivemos situações que poderiam ter saído de um romance ruim, escrito por um
autor com certa inclinação aos enredos rocambolescos e às reviravoltas súbitas.
A arte, enquanto espelho do
mundo, pode, além de ser bela, ter certo efeito pedagógico. Apesar de sua
verossimilhança – suficiente para muitas vezes nos afeiçoarmos a personagens que,
embora jamais tenham existido, nem por isso foram menos queridos, como velhos
amigos – muito raramente nos deixamos iludir a respeito de sua realidade.
Conhecemos bem seu status ontológico,
e mesmo os arroubos fantasiosos da arte têm como referência o mundo e forçosamente
nos remetem de volta a ele. A ficção, portanto, pode ser um
importante exercício de consciência, que nos ajuda, pela imaginação, a nos
tornarmos mais seguros quanto à posição que nós mesmos ocupamos na existência. Também
é pela ficção que aumentamos nosso repertório de experiências vividas: ao ler
sobre o que acontece com os personagens, num certo sentido vivemos suas vidas e
nos enriquecemos existencialmente.
Qual a diferença, então, em
relação aos vídeo-games e à internet? É a interatividade, eu diria. Ao lermos
um livro ou assistirmos a uma peça, somos expectadores: estamos fora da obra.
Durante a inteireza da experiência estética nós adotamos uma postura puramente
contemplativa: acompanhamos a obra talvez da mesma forma que os deuses
contemplem a vida humana, do alto de sua montanha sagrada.
No vídeo-game não: o expectador
pode, também, intervir no rumo da narrativa. O jogador está, na verdade, dentro
da narrativa, e suas decisões afetam seu desenrolar. É quase como se nós
pudéssemos entrar na Ilíada e participar dos diferentes embates,
influenciando o resultado da peleja entre gregos e troianos.
A interatividade desencadeia, de
forma inconsciente, uma das capacidades mais importantes que utilizamos para
aprender sobre o mundo e intervir nele: nossa pulsão lúdica. A vida, num certo
sentido, é brincadeira, pois nossa liberdade se exerce sobre os objetos do
mundo como intervenções e apostas. E se apenas um louco confundiria o enredo de um romance com a realidade, não são poucos os jovens inteligentes que acham valer a pena viver numa espécie de sub-realidade, onde eles podem alcançar satisfações e transformarem-se em personas muito mais interessantes que aquelas que exercem na vida real.
O problema é que os vídeo-games
que nós jogamos são inventados por homens como nós. Ainda que seja possível
empregar muito talento e expertise técnica para engendrar mundos fabulosos –
fundamentados em complexas equações que são capazes de gerar resultados
aleatórios e sempre novos, que sempre renovam a experiência do jogar – tal
realidade sempre encontrará um limite cognitivo, definido pela incapacidade
humana de produzir consciência ou de criar, como talvez tenha criado Deus,
universos.
Não acho inconcebível um jogo de video-game que pudesse exercer um papel aparentado ao da arte. O que dá riqueza a uma narrativa, afinal, é a criatividade do autor, o qual partindo da experiência real do mundo é capaz de criar personagens, acontecimentos e lugares que, mesmo sendo fantasiosos, possuem profundidade e complexidade derivadas da vida efetivamente vivida. Um video-game autoral poderia assumir essa função narrativa, mudando o foco da mera construção de ambientes simulados de divertimento para gerar uma experiência ainda mais radical de ficção - uma espécie de romance aberto, em que o leitor seria, também, personagem.
Tal potencialidade, porém, muito raramente é explorada a sério, e isso porque desde seu nascimento os video-games estão vinculados às considerações mercantis da indústria do entretenimento. Os video-games nasceram como mercadoria, e seu apelo reside não na capacidade de trazer consciência ao consumidor - o que demandaria concentração e alguma medida de esforço - mas sim na capacidade de relaxamento criada pela interação com situações de jogo pré-concebidas. É por isso que neles o elemento autoral é muito pequeno: o que realmente interessa é a engenhosidade do mecanismo-mundo, ou seja, a programação da realidade virtual em que o jogador poderá viver sua segunda vida.
Além disso, por mais sofisticados que estejam se tornando os jogos, nós não somos capazes de criar uma realidade em que possam conviver o exercício da liberdade do jogador com a profundidade psicológica e semântica que encontramos na literatura. A complexidade dos livros é derivada do mundo real. À medida em que o autor vai criando seus enredos, ele possui liberdade para deixar sua estória fluir numa ou noutra direção. Porém, uma vez que a narrativa está completa, ela é um todo que não pode mais ser alterado. Por mais imprevisíveis que sejam os meandros do enredo, ele é um universo fechado, uma espécie de fotografia do imprevisível. Não cabe ao leitor intervir na estória e mudar o desfecho...
Nos video-games liberdade e narrativa podem conviver, porém apenas num nível, básico, quase mecânico. Ou o jogador escolhe entre possíveis linhas narrativas pré-determinadas pelos programadores, ou a construção do enredo se dá de forma simplória, mediante a interação com referências numéricas como "pontos" ou conquistas. Ou seja, um video-game que tivesse a pretensão de profundidade narrativa só conseguiria alcançar esse objetivo sacrificando a liberdade de atuação do jogador (um exemplo muito concreto disso são os antigos jogos da LucasArts, que apresentavam narrativas muito interessantes, porém rigidamente pré-definidas).
A coexistência de imensurável liberdade com imensurável profundidade/complexidade é um atributo do mundo. E a nós, homens, não foi dada o dom de criar verdadeiros mundos - do mesmo modo que não nos foi dado o dom de dar vida. Nosso poder criativo pode ser metaforicamente expresso pelo fogo de Prometeu – partilhamos, de forma derivada, a mesma inclinação gerativa que talvez esteja na origem do ser. Somos capazes de inovar, de sonhar com mundos que ainda não existiram e de tentar torná-los reais. Mas a metáfora se completa quando Prometeu é acorrentado no abismo – ou quando Ícaro morre afogado no oceano, após o sol ter derretido a cera das asas que ele usava para voar pela amplidão azul do céu: nosso poder criador tem um limite, e nós não podemos gerar autêntica vida ou um autêntico mundo. E isso porque somos humanos: ser capaz de criar autêntica vida e autêntico mundo talvez seja uma boa definição para o que é ser Deus.
Não acho inconcebível um jogo de video-game que pudesse exercer um papel aparentado ao da arte. O que dá riqueza a uma narrativa, afinal, é a criatividade do autor, o qual partindo da experiência real do mundo é capaz de criar personagens, acontecimentos e lugares que, mesmo sendo fantasiosos, possuem profundidade e complexidade derivadas da vida efetivamente vivida. Um video-game autoral poderia assumir essa função narrativa, mudando o foco da mera construção de ambientes simulados de divertimento para gerar uma experiência ainda mais radical de ficção - uma espécie de romance aberto, em que o leitor seria, também, personagem.
Tal potencialidade, porém, muito raramente é explorada a sério, e isso porque desde seu nascimento os video-games estão vinculados às considerações mercantis da indústria do entretenimento. Os video-games nasceram como mercadoria, e seu apelo reside não na capacidade de trazer consciência ao consumidor - o que demandaria concentração e alguma medida de esforço - mas sim na capacidade de relaxamento criada pela interação com situações de jogo pré-concebidas. É por isso que neles o elemento autoral é muito pequeno: o que realmente interessa é a engenhosidade do mecanismo-mundo, ou seja, a programação da realidade virtual em que o jogador poderá viver sua segunda vida.
Além disso, por mais sofisticados que estejam se tornando os jogos, nós não somos capazes de criar uma realidade em que possam conviver o exercício da liberdade do jogador com a profundidade psicológica e semântica que encontramos na literatura. A complexidade dos livros é derivada do mundo real. À medida em que o autor vai criando seus enredos, ele possui liberdade para deixar sua estória fluir numa ou noutra direção. Porém, uma vez que a narrativa está completa, ela é um todo que não pode mais ser alterado. Por mais imprevisíveis que sejam os meandros do enredo, ele é um universo fechado, uma espécie de fotografia do imprevisível. Não cabe ao leitor intervir na estória e mudar o desfecho...
Nos video-games liberdade e narrativa podem conviver, porém apenas num nível, básico, quase mecânico. Ou o jogador escolhe entre possíveis linhas narrativas pré-determinadas pelos programadores, ou a construção do enredo se dá de forma simplória, mediante a interação com referências numéricas como "pontos" ou conquistas. Ou seja, um video-game que tivesse a pretensão de profundidade narrativa só conseguiria alcançar esse objetivo sacrificando a liberdade de atuação do jogador (um exemplo muito concreto disso são os antigos jogos da LucasArts, que apresentavam narrativas muito interessantes, porém rigidamente pré-definidas).
A coexistência de imensurável liberdade com imensurável profundidade/complexidade é um atributo do mundo. E a nós, homens, não foi dada o dom de criar verdadeiros mundos - do mesmo modo que não nos foi dado o dom de dar vida. Nosso poder criativo pode ser metaforicamente expresso pelo fogo de Prometeu – partilhamos, de forma derivada, a mesma inclinação gerativa que talvez esteja na origem do ser. Somos capazes de inovar, de sonhar com mundos que ainda não existiram e de tentar torná-los reais. Mas a metáfora se completa quando Prometeu é acorrentado no abismo – ou quando Ícaro morre afogado no oceano, após o sol ter derretido a cera das asas que ele usava para voar pela amplidão azul do céu: nosso poder criador tem um limite, e nós não podemos gerar autêntica vida ou um autêntico mundo. E isso porque somos humanos: ser capaz de criar autêntica vida e autêntico mundo talvez seja uma boa definição para o que é ser Deus.
Ou seja, por mais fascinante que
seja a complexidade de um jogo de vídeo-game, sua realidade estará para sempre
condicionada à variabilidade tornada possível pela matemática humana. As
situações, ainda quando aleatórias, são situações em algum momento pensadas e
programadas por alguém. Os resultados possíveis também foram em algum momento
antecipados e associados pelos criadores do jogo. Essa pobreza fenomenológica,
porém, dificilmente será percebida pelo jogador habitual em razão dos
fascinantes gráficos e sons, criados com o declarado propósito de nos
deslumbrar, ou seja, de tornar praticamente impossível à nossa capacidade de
percepção entender que o que estamos experimentando é uma sensacional e
engenhosa ilusão. E, ao supormos que estamos nos divertindo, deixamos bons
pedaços de nossas vidas escorrerem pelo ralo: vivemos numa divertida miragem, onde somos mais poderosos, mas que constrange nosso intelecto aos estreitos limites definidos por uma equipe de designers e de matemáticos.
Já os limites conceituais do mundo real não
estão ao alcance de nossa mente. É pura presunção hominídea achar que um dia
nós conseguiremos desvendar os códigos que cifram as possibilidades da vida. O
universo – esse intrigante playground da alma – será para nós um eterno enigma,
uma fonte infindável de experiências boas e ruins, a partir das quais podemos
iniciar nossa busca pelo conhecimento. Ele é pura possibilidade, puro potencial, e sabemos lá nós quais são os infinitos caminhos que podemos trilhar em nossa vida. O melhor que podemos fazer é vivê-la.
E se esta também é uma realidade-simulacro
– da qual um dia nós nos libertaremos quando caírem as escamas que impedem
nossos olhos de ver outra realidade ainda mais real – resta-nos pelo menos a
certeza de que esse real que está ao nosso alcance é uma realidade-simulacro
infinitamente mais rica, mais bela e mais interessante do que aquelas dos
mundos virtuais, pois por trás de suas equações encontra-se não um homem, mas o
intrigante Programador cuja intenção nosso coração anseia conhecer.
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