sábado, 17 de janeiro de 2015

Novo Site do Blog!


O Blog foi transferido para o link: 

http://todososproblemasdomundo.com.br


Atenção! Atenção, pessoal! Essa é para contar para o papai, a mamãe, a titia e o vovô!

O Blog Todos os Problemas do Mundo está de cara nova, e com novo endereço! Graças aos hercúleos esforços de Zé Roberto – que agora também contribuirá com textos de sua autoria – estamos relançando o blog num novo formato, e num novo domínio!

Ha, Hae! Para acessá-lo, basta digitar http://todososproblemasdomundo.com.br

E pronto! Você poderá usufruir pérolas da sabedoria perene, acessar ensaios escabrosos sobre os males que, neste aeon, se abatem sobre os homens sem qualidades, deleitar-se com contos de um humor duvidoso e gratuito e, enfim, aprender por que meios resolver, de forma irrevogável e cabal, TODOS OS PROBLEMAS DO MUNDO!

Acessem o novo site, e anunciem a boa nova aos quatro ventos!

Beijos, nos liguem!

Ass: Equipe Todos os Problemas do Mundo

todososproblemasdomundo@gmail.com

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sábado, 27 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 3 (Cenas 1 a 3)

CENA 1

         

Entra uma segunda companheira de cela, desconfiada, e encontra Suzana rezando de costas.


SUZANA – Você tá chegando agora; pode sentar nessa cama maior aí. Eu não me importo.

COMPANHEIRA – Fica sossegada, tô vindo da outra ala. Já vou voltar pra lá.

Silêncio.


COMPANHEIRA – Aproveita que você tá rezando aí e reza por mim.

SUZANA – Está bem.

COMPANHEIRA – Mas que maldade fizeram com esta presa que tava aqui...

SUZANA – O que fizeram com ela?

COMPANHEIRA – Enganaram ela mais uma vez. Pensou que fosse ganhar liberdade; mudou só de pavilhão.

Silêncio.


SUZANA – Mas que vantagem viram nisso? O prazer de ser ruim...

COMPANHEIRA – Ou não queriam ela perto de você. Ou me queriam aqui bem do seu lado.

Silêncio. A diarista segue ajoelhada ao pé da cama. Com um chuço, a outra golpeia-a pelas costas. Suzana cai sangrando.

COMPANHEIRA – Vai rezar no além, X9! A lei da cadeia é uma só. Abriu o bico... tem que pagar. (provando o sangue com a ponta do dedo) Humm... Que sobremesa você comeu, mulher? Você está doce, doce. (para a janela da cela) Socorro! Tem uma suicida aqui!

Puxando um lençol da cama, começa a limpar a cena do crime; logo desiste.

COMPANHEIRA – (provando o sangue) Deixa eu provar um pouquinho mais do teu veneno. Hummm... Mulher, você bebeu dentro da cadeia? Está puro álcool! Vou ficar bebinha. Socorro, agente! Uma mulher se feriu aqui! Socorro! A interna se matou!

Cortina.



ATO 3

CENA 2

No meio da rua.


MELISSA – Juro pra você que eu não queria fazer isso!

EDUARDO – Agora nós vamos até o fim nessa história, madame. Eu vou te botar na cadeia.

MELISSA – Não fale comigo desse jeito, Eduardo. Eles arrombaram a minha casa e pegaram as coisas. Eu já estava arrependida e ia te devolver tudo. Não sei o que deu em mim!

EDUARDO – Você vai se lembrar diante do delegado.

MELISSA – Deixa eu ir à polícia contigo.

EDUARDO – Comigo não. Eu vou sozinho.

MELISSA – Eu quis voltar atrás e desistir de tudo. (divagando) Não sei o que me deu: fui me deixando enredar pela vida assim como uma cobra de rio, sabe, que foi me abraçando, me apertando, me deixando cada vez mais sem fôlego e paralisada. Naquela noite na tua casa, eu já estava dividida... Eu não queria, eu não ia fazer aquilo. Mas de repente senti um impulso dentro de mim, uma voz dizendo: “Ninguém serve a dois senhores. E você já escolheu um lado. Se der pra trás, vai trair a ambos”. (se ajoelhando diante dele) Foi uma tremenda confusão na minha cabeça, depois a bebida, a pressão que eu ia sofrer no dia seguinte... Me perdoa, Eduardo!

EDUARDO – Por mais que eu quisesse acreditar, a verdade é que agora o meu nome está enlameado nessa história. Vou à polícia contra você, até para limpar a minha reputação.

São surpreendidos na rua por homens armados.
ENCAPUZADO 1 – De pressinha, façam tudo o que a gente mandar.

ENCAPUZADO 2 – Entra no carro, senão a gente te apaga aqui mesmo.

MELISSA – Foge, Eduardo! É a mim que eles querem sequestrar! Salva a tua vida!

Dr. Eduardo Wallenstein, assustado, sai de cena correndo. Os encapuzados agarram-na.

MELISSA – (estridente) Ai, está me machucando! (voz abafada por um travesseiro) Socorro! Socorro!

Os atores retiram-se do palco pela esquerda e retornam em seguida. Com os olhos vendados e vestindo uma camisola branca comprida, Melissa é conduzida a um porão escuro (meia-luz no teatro). Ali estão Chang Lu e seus sequazes.
MELISSA – Onde estou?

BANDIDO 1 – Na Vila Portes.

MELISSA – Onde exatamente?

CHANG LU – Nem adianta saber. Na Vila Portes, todas as ruas são iguais.

BANDIDO 2 – Posso contar, chefe?

BANDIDO 1 – Fala logo, animal.

BANDIDO 2 – Você está achando escuro, princesinha, porque estamos no subsolo de um estabelecimento comercial.

BANDIDO 1 – Isso aqui não é estabelecimento comercial, idiota.

BANDIDO 2 – Então é o quê?

BANDIDO 1 – Estacionamento rotativo.

CHANG LU – Chega de conversa. Tragam a belezura pra mim.

A garota está de mãos atadas. Um capanga gordo e nojento passa a mão lascivamente nos seios dela para aterrorizá-la. Ela é sentada numa cadeira diante do Julgador.
MELISSA – Tenham misericórdia, pelo amor de Deus!

CHANG LU – Deus não existe. Portanto, eu sou Deus!

MELISSA – (rezando) Senhor, tem piedade de mim!

Surge um terceiro sequaz anunciando:
BANDIDO 3 – (alto) Vai começar o Julgamento!

BANDIDO 1 – (para o outro) Vamos, vai começar o Julgamento.

BANDIDO 2 – Vai começar já.

CHANG LU – Ainda não. Antes, vamos preparar os ritos processuais...

BANDIDOS – (em coro) ...para que se faça a justiça.­­

Começa um ritual preparatório. Alguém com um arremedo de vestes talares apresenta um bode vivo ao Poderoso Chefão; depois o repousam numa bandeja e se dispõem em círculo ao redor dele. Em seguida, Godfather, com voz cavernosa, profere as palavras inaugurais do rito: - “Vamos pedir proteção para o bode”, no que é imitado por cada um dos seus sequazes. O animal é circundado também por objetos depositados em torno dele (a imagem de um rochedo, pássaros empalhados, madeira, ouro, serpentes, uma minicascata decorativa). Todos os presentes, exceto a vítima, começam um jogo de lançar armas contra o bode, sem o atingirem, simulando uma imunidade mágica do animal. O simulacro dura alguns minutos até que surge um ator fantasiado de demônio. O demônio mostra-se incomodado com a brincadeira. Ele então pega pela mão um ceguinho fantasiado de óculos escuros e o conduz em direção ao bode, enquanto os demais fingem apenas assistir à cena, atônitos, sem nada entender. “Por acidente” o galho de arbusto que o cego segurava nas mãos, como arma inofensiva, cai no chão, e o demônio o troca por um punhal (como numa comédia de erros). Finalmente, o cego mata o bode por engano. Aí os presentes simulam uma reação coletiva contra o demônio astuto que enganou o cego, mas o demônio foge. O bode assassinado é oferecido a Chang Lu, em tom reverencial. A bandeja com o animal é então retirada da sala, como num andor, para ser lida a sentença de Melissa.
CHANG LU – Como você acaba de ver, a senhora foi considerada culpada.

MELISSA – Como é possível? Eu não fui sequer acusada!

CHANG LU – E precisa? A senhora mesma já se acusou.

MELISSA – Eu não disse uma palavra.

CHANG LU – Vejamos... (consulta papéis, simulando a atitude de um juiz) A senhora está sendo acusada de trair o seu namorado.

MELISSA – Que absurdo! Tudo o que eu fiz de errado só favoreceu a você, seu Diabo!

CHANG LU – A ré confessa, portanto, que cometeu o crime de perfídia. (fingindo que lê) A senhora iludiu um jovem magistrado de promissora carreira, tornando-se falsa namorada do rapaz para apropriar-se de documentos judiciais sigilosos, a saber, um relatório de inteligência da Polícia Federal com fotografias de novos traficantes que estão chegando à região da Tríplice Fronteira para concorrer com os meus negócios.

MELISSA – Eu repito: enganei o Eduardo e me arrependo. Mas, Excelência, não posso ser condenada por isto nesta Corte, porque meu ato só favoreceu a você mesmo.

CHANG LU – Vejamos... esta é apenas a metade da sua condenação. A outra metade é que, além de pôr a mão nas informações sigilosas prejudicando o seu namorado, a senhora se recusou a entregá-las ao Dr Bruno Zambetta quando solicitada, cometendo assim um crime de traição à organização do tráfico que já havia pago os seus honorários para executar o serviço por meio daquele escritório de advocacia.

MELISSA – É um absurdo! Eu não posso ser culpada pelas duas acusações ao mesmo tempo. E mais: eu não reconheço a legitimidade deste juízo. Isso aqui é um tribunal de exceção, que não tem nenhum valor legal.

CHANG LU – Doutora Melissa Fausto, não seja ingênua. Argumentos jurídicos não lhe servem de nada aqui. Se a senhora está num pesadelo, não pode apelar a instâncias do próprio sonho para contestá-lo. O pesadelo tem regras próprias e você está amarrada a ele até o fim, a menos que um fato externo lhe desperte. A senhora nunca leu Hans Kelsen?

MELISSA – Li na faculdade.

CHANG LU – Pois então. O Direito é um sistema autopoético, que se alimenta de si mesmo.

MELISSA – Desculpe corrigi-lo, Excelência, mas essa frase é do Niklas Luhman.

CHANG LU – Não faz mal. Os dois são compadres meus.

MELISSA – Faz-me rir, ô Godfather. Vai dizer que você é padrinho dos filhos deles também...

CHANG LU – Não tive esse privilégio. Mas é que, igualmente no meu sistema, Deus não pode te salvar.

BANDIDO 1 – Que barulho é esse, chefe?

BANDIDO 2 – (entrando na cena) Tem uma mulher lá fora querendo falar com o senhor, patrão.

CHANG LU – Quem é? Manda entrar.

Entra uma louca varrida conduzida pelo terceiro bandido.
LOUCA – (escandalosa) Ô China, ajuda eu! Ô China! Ajuda essa pobre mãe!

CHANG LU – Você outra vez! Eu não aguento mais esta louca na minha casa. Nós já acertamos a nossa parte no trato. O que você quer?

LOUCA – Me traz as minhas fias de volta. Eu tô arrependida. Eu quero comprar elas de volta.

CHANG LU – Tirem essa louca da minha frente.

Os bandidos arrastam a mulher, que grita histericamente.
CHANG LU – (irritado) Solta, solta. O que mais você quer? Fale logo!

LOUCA – (recuperando a lucidez) Eu quero devolver a casa que você me deu. Quero desfazer o nosso contrato. Traz as minhas filhas de volta lá da China...

CHANG LU – Trato é trato. E desfazer sai caro.

MELISSA – Seu canalha, você vendeu as meninas?

CHANG LU – Cale a boca! Ninguém pediu a sua opinião. Quem vendeu foi a mãe; eu só exportei pra Taiwan. (à mulher) Pra provar que tenho um coração mole e a senhora parar de me incomodar, podemos desfazer o nosso Pacto. A senhora devolve o imóvel, mas tem que escolher uma das duas filhas; não pode ter as duas de volta.

LOUCA – (enlouquecendo outra vez) Ai, como é que eu vou escolher uma filha e matar a outra?

CHANG LU – É pegar ou largar. E tem que pagar as despesas com a passagem de volta, que custa uma fortuna. Só posso perdoar essa dívida, se você casar comigo.

MELISSA – Você quer se casar com essa louca?

CHANG LU – (confidenciando) É só de fachada... eu preciso do visto pra ficar no Brasil. (aos seus homens) Agora, pela última vez, tirem essa mulher da minha frente.

Saem arrastando a mulher que grita desesperadamente. Quando os três bandidos retiram-se da cena para levá-la, ouve-se um barulho de confusão. É o Dr Wallenstein com a Polícia Federal.
EDUARDO – Esteja preso!

BANDIDO 1 – (sendo algemado) Chefe, não deu tempo avisar!

No tumulto, enquanto os três sequazes são algemados Chang Lu consegue fugir. Ele desaparece magicamente com uso de fumaça cênica.
Cortina.

sábado, 20 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 2 (Cenas 1 a 4)


CENA 1

Esta cena acontece em três ambientes. Do lado direito do palco, os apartamentos de Melissa e de Eduardo; o dela em primeiro plano, o dele em segundo plano. Ela caminha de um lado para outro, enquanto ele repousa na cama. Enquanto conversam ao telefone, a cortina deve ocultar a metade esquerda do palco e depois descerrar o Casino Tango, onde os dois marcaram o primeiro encontro.
            MELISSA – Ai, será que eu ligo ou não ligo? Melhor não... ele vai me achar oferecida. A gente mal se conhece... Bom, tecnicamente, nós fomos apresentados. Então... Ai, e quem é que liga pra isso hoje em dia? Se é o homem que deve tomar a iniciativa, se é a mulher... Tanto faz, gente! Vou ligar! Não, espera aí! Já sei. Vou mandar mensagem, é melhor. (pegando o celular) “Ooooi, dou-tor Wal-lens-tein...”. Xi, e agora? Como é que se escreve Wallenstein? Não posso escrever o nome do homem errado. A primeira impressão é a que fica. (decepcionada consigo) Ai, ele vai me achar burra... A promotorazinha lá fez mestrado em Bonn. E eu estudar alemão que é bom... Ah, o cartão de visita. Ele me deu o cartão de visita. Onde foi que eu coloquei? Aquiii! Ah, estava certinho o sobrenome dele. E eu me preocupando à toa... Melissa, te acalma! Não vai estragar o primeiro encontro, sua louca! Fica calma, relaaaaxa... Isso! Respira fundo. Continuando... “Ooooi, dou-tor Wal-lens-tein...” (interrompendo de novo) Ou será que era melhor chamar de Eduardo mesmo? Não. Deixa assim: não vamos forçar a amizade por enquanto... “A-que-le con-vi-te para ir à Ar-gen-ti-na es-tá de pé?”. De pé? Ai, que horrível! Já sei: “Aceito o seu convite para ir a Argentina hoje”. “Estou lou-ca para co-mer... um doce de leite”. Ai, que maravilha! (caminhando pra lá e pra cá) Ah, já respondeu! (lendo a mensagem) “Sim. Me liga”. Devia estar esperando minha mensagem. Vamos lá... (discando o número) Alô?
EDUARDO – (deitado) Oi, doutora Fausto. Tudo bem?
MELISSA – Aqui, tudo ótimo. E por aí?
EDUARDO – Eu estava pensando em telefonar pra você.
MELISSA – Não me diga... Respondeu rápido, hein, a mensagem.
EDUARDO – Pensei que não fosse ligar.
MELISSA – Ah, por quê? Eu cumpro o que prometo.
EDUARDO – Sei lá. Você me pareceu tão séria hoje de manhã.
MELISSA – Bem, eu não estava séria. Estava tensa.
EDUARDO – Tensa por quê?
MELISSA – Eu fico tímida quando me apresentam uma pessoa pela primeira vez.
EDUARDO – Eu te entendo. Também sou tímido.
MELISSA – Ah é? Não parece...
EDUARDO – É que eu disfarço bem.
MELISSA – Então... você queria passear na Argentina?
EDUARDO – Sim, pois é. Sou novo aqui na cidade e não conheço quase nada ainda.
MELISSA – Ah, eu amo o doce de leite argentino.
EDUARDO – Eu prefiro os vinhos.
            MELISSA – Bem, eu não bebo. Mas posso te levar pra conhecer um lugar legal.
            EDUARDO – É romântico?
            MELISSA – (sorrindo desconcertada) Bem... é bonito o lugar.
            EDUARDO – Hoje está uma noite muito romântica, não acha?
            MELISSA – Eu diria que está uma noite quente.
            Sorriem ao telefone.
            EDUARDO – E que lugar é esse?
            MELISSA – Se chama Casino Tango.
            EDUARDO – Desculpa, mas não posso entrar em cassino.
            MELISSA – Por quê?
            EDUARDO – Você sabe, é proibido no Brasil.
            MELISSA – Mas é permitido do outro lado da fronteira.
            EDUARDO – Eu sei, mas um juiz tem que preservar a sua imagem.
            MELISSA – Você não estará fazendo nada de errado.
            EDUARDO – É aquela história da mulher de César...
            MELISSA – (relaxando no sofá) Que tem a mulher de César?
            EDUARDO – Diz a sabedoria popular: a mulher de César tem que parecer honesta.
            MELISSA – Não tem nada demais, é só uma noite...
            EDUARDO – Alexandre Magno perdeu o império por uma noite.
            MELISSA – Você acredita em citações clássicas?
            EDUARDO – Podemos imaginar uma manchete moderna. GAZETA DO IGUAÇU: Extra! Magistrado brasileiro é flagrado em jogos ilícitos...
            MELISSA – Vamos, a gente fica só na área externa do restaurante, não entra no salão de jogos.
            EDUARDO – Foi assim que Israel perdeu a guerra e Napoleão perdeu a paz.      
MELISSA – Ai, não seja tão Caxias. Além do mais, nós temos um bom argumento jurídico: cada país define o que é certo e errado dentro de suas fronteiras. É uma questão de soberania e de respeito ao direito internacional.
            EDUARDO – (falando consigo) Essa é do balacobaco! (para ela) Está bem, dou-to-ra Melissa. Se eu for pra cadeia, você será minha advogada?
            MELISSA – Eu vou até o último recurso pra te tirar de lá.
            Sorriem.
            EDUARDO – (falando de si pra si) Com você, eu vou até ao inferno.
            MELISSA – Nos encontramos lá daqui a pouco então?
            EDUARDO – Sim, em meia hora estarei lá.
            Movimento de cortinas. Os dois caminham em direção à metade esquerda do palcoLua cenográfica. Restaurante argentino com maître.
            MELISSA – Ah que coincidência!
            EDUARDO – Chegamos juntos!
            MELISSA – É o destino nos unindo mais uma vez.
            EDUARDO – Você viu a lua? Que enorme!
            MELISSA – A lua está linda!
            EDUARDO – Lua soberana!
            MELISSA – Sabe onde eu gosto de olhar a lua?
            EDUARDO – Onde?
            MELISSA – Lá no meio das Cataratas, na Garganta do Diabo.
            EDUARDO – Garganta do Diabo... Não gosto desse nome, soa meio macabro. Por que será que chamam assim?
            MELISSA – Sei lá, talvez porque o Diabo é o Senhor da Morte e se alguém cair lá embaixo morre...
            EDUARDO – E quem caiu encontrou mesmo o Diabo lá... no fundo?
            MELISSA – Não sei, jamais uma alma voltou das águas pra contar.
            EDUARDO – Você já teve vontade de pular lá de cima pra saber?
            MELISSA – Só uma vez.
            EDUARDO – Faz tempo?
            MELISSA – Eu tinha 15 anos. Entrei escondida no parque à noite.
            EDUARDO – Você não ficou com medo?
            MELISSA – Não. Eu costumava fazer isso na minha adolescência.
            EDUARDO – E o que você sentiu?
            MELISSA – Primeiro, me deu um arrepio. Era lua nova. Eu estava bem na borda do mirante, sozinha. Depois do arrepio, veio um vento, uma brisa suave... Aí me bateu uma curiosidade... (pausa como se estivesse revivendo aquele instante) Depois eu senti uma vertigem e perdi a coragem. Acho que é por isso que chamam de Garganta do Diabo: pelos desejos ruins que dá na gente.
            EDUARDO – Entendi. Mas as Cataratas são divinas!
            MELISSA – Um dia ainda te levo lá.
EDUARDO – Vou cobrar, hein.
O maître aproxima-se da mesa.
MELISSA – Eu cumpro o que prometo.
EDUARDO – O que você vai pedir?
MELISSA – Vou querer um salmão. E vinho branco pra acompanhar.
EDUARDO – Você me disse que não bebia.
MELISSA – Esta noite é especial.
EDUARDO – Pois eu vou de bife de chorizo. E vinho tinto, por favor.
Retira-se o maître. O som do restaurante toca a canção POR UNA CABEZA, de Carlos Gardel.
MELISSA – Ai, eu amo essa música.
EDUARDO – Você viu o filme?
MELISSA – Eu vi todas as versões.
EDUARDO – Só assisti àquela com Al Pacino.
MELISSA – Ah, eu prefiro a versão italiana. É muito triste... Você sabia que o ator morreu num acidente de carro e nunca chegou a ver o filme exibido no cinema?
EDUARDO – Não fazia a menor idéia. Que tragédia! Mas o que é que te atrai tanto nesse filme?
MELISSA – Não sei, acho que a figura do cego. É muito forte.
EDUARDO – E o desejo de suicídio?

MELISSA – Talvez.
Chegam os pratos.
EDUARDO – Bom apetite.
MELISSA – Obrigada.
EDUARDO – Pra mim, o mais interessante é como a amizade deles vai crescendo aos poucos.
MELISSA – E a cena do tango!
EDUARDO – Claro!
MELISSA – (enamorada) Como eles dançam!
EDUARDO – (fechando os olhos e suspirando) E o cheirinho dela!
            Beijam-se pela primeira vez, um beijo lento e molhado, derrubando uma taça de vinho tinto que escorre pelo chão. Reduzem-se as luzes.
            Cortina.
            

CENA 2

Na cadeia, a diarista conversa com sua companheira de cela. Dois catres entre grades, nada mais.
CARMEN – Como você veio parar aqui, colega? Matou quem?
SUZANA – Eu não matei ninguém não. Eu queria ter matado...
CARMEN – Teu marido?
SUZANA – Não, este traste morreu mesmo foi de morte natural.
CARMEN – Morreu de quê?
SUZANA – Bebia muito. Diz que foi cirrós que deu nele.
CARMEN – Sei como é...
SUZANA – O meu sogro era assim, viciado na bebida. O povo diz que é mal de família.
CARMEN – Eu não acredito nessas coisas. Cada um faz o seu destino.
SUZANA – Pode ser.
CARMEN – Mas então por causa de quê tu veio pra cá? Foi um cinco sete?
SUZANA – Um cinco sete? O que é isso?
CARMEN – Vai se acostumando. São os códigos da cadeia... Se você roubou, você tem que falar pro advogado que você é o 1-5-7, pra ele entender. Eu demorei muitos anos pra aprender esses códigos; a colega que tava antes no teu lugar, ela era um sete um. Se você matou, você fala que é o cento e vinte e um.
SUZANA – Eu não matei ninguém não.
CARMEN – Então foi o quê, colega? Tráfico?
SUZANA – Foi tráfico, mas a culpa não foi minha não.
CARMEN – Ah conta outra, colega. Aqui todo mundo é santo.
SUZANA – Santa eu não sou, mas juro que não tenho culpa. Só fui em cana porque o miserável do Bode-Brabo botou meu filho nessa história.
CARMEN – Quem? O Tião?
SUZANA – O próprio!
Silêncio.
SUZANA – Eu trabalho é de diarista. Passo o dia em casa alheia, limpando bosta dos outros.
CARMEN – Cruz credo. Deve ser horrível...
SUZANA – Não é não. É um trabalho como outro qualquer.
CARMEN – E como é a casa do patrão? Tem cofre, joia guardada?
SUZANA – Olha, se tem, eu nunca vi.
CARMEN – Há quanto tempo tu trabalha lá?
SUZANA – Depende, eu limpo mais de uma casa.
CARMEN – Um patrão é ruim. Imagine dois...
SUZANA – É... Cada um tem a sua natureza. Duas vez por semana eu trabalho pra uma família de libanês. Tem o apartamento da doutora, que eu faxino só uma vez por semana, porque ela é sozinha e não faz muita sujeira. E tem o Sr Karten, que eu vou lá quando o filho dele me liga pra eu ir ver como ele tá.
Passa o carcereiro e se aproxima da grade, observando.
SUZANA – Esse Karten é um alemão rico que tem fazenda no Paraguai. Por causa de um derrame trouxeram ele pra morar aqui, devido aos remédio que ele toma. Cuidar de velho é como lidar com criança: tem que ter muita paciência. Mas eu acho que esse alemão finge a doença. Às vezes penso que ele tá é muito são da cabeça. Outro dia eu fui fazer faxina de saia e o velho meteu a mão na polpa da minha bunda, querendo me agarrar. Velho safado! E queria me pagar cinquenta reais pra eu fazer carinho nele. Velho safado! Eu telefonei pro Seu Frederik Karten pra dizer que nunca mais eu faxinava aquela casa. Foi me pedindo pra ter paciência, que velho é assim mesmo, disse que ia aumentar a minha diária, que não conhecia ninguém de confiança... Acabei ficando. E o desgraçado do velho na outra semana com a cara mais lisa, como se nada tivesse acontecido. Fingiu esquecimento... me olhando de rabo de olho. Eu digo que ele não teve derrame coisa nenhuma. Pra mim, ele se cansou da vida na fazenda, de dever ao governo, lutar contra invasor de terra... Agora está aí, viúvo, vivendo sozinho naquela casa. Coitado. Me dá até pena.
CARMEN – E quem é que toma conta do dinheiro dele? Ele dorme sozinho?
SUZANA – Não, ele tem um compadre de Santa Catarina que às vezes vem aí e fica umas semanas fazendo companhia a ele.
CARMEN – E ele guarda dinheiro debaixo do colchão?
SUZANA – Não! Ele urina na cama... Imagina o que é lavar lençol de idoso e colocar colchão mijado pra secar no sol!
            Passa outra vez o carcereiro, observando.
            SUZANA – Mas eu tenho pena mesmo é da doutora promotora. A mulher já vai com mais de trinta anos e não tem família. Esses dias arranjou um namorado novo, mas disse pra mim que não ia ter filho. Prefere criar um cachorro. O bicho é muito mal educado: solta pêlo na casa inteira. Me dá um trabalho... A patroa é louca por esse cachorro, dorme até com ela na cama, beija na boca como se fosse gente. Em casa de madame tem cachorro melhor que muita criança nesse mundo. Ai, o meu Danielzinho... me deu um aperto no coração... Será que ele tá bem?
Passa o carcereiro mais uma vez.
CARMEN – Esse fela da mãe tá rondando e escutando a nossa conversa. O que será que ele quer?
SUZANA – Não sei. Ele está olhando mais pra você.
CARMEN – Todo mundo aqui me conhece. Meu nome de guerra é Carmen Duralex. Eu não tenho medo de homem! Nem de mulher nenhuma!
SUZANA – Calma, ele já está indo embora.
CARMEN – Ele não sabe quem está provocando... Se ele se aproximar aqui de novo, eu arranco fora a tromba dele. Peguei a vagabunda na cama com meu marido e capei o desgraçado com faca cega de cozinha.
SUZANA – Pronto, ele já foi. Acho que veio ver se estava tudo bem...
CARMEN – Antes só entrava mulher na cadeia feminina. Mas era até pior, sabia. Eram mais abusadas.
SUZANA – Ai, quando é que eu vou sair daqui? Não aguento mais...
CARMEN – Vai se acostumando. Já aniversariei seis vezes aqui dentro.
SUZANA – Estou preocupada com meu filho.
CARMEN – Olha ali, o maldito está vindo de novo... Se prepara!
CARCEREIRO – Quem é a detenta Carmen de Brito?
CARMEN – Sou eu. Por quê?
CARCEREIRO – Pode arrumar as suas coisas que a senhora vai ser liberada.
CARMEN – Eu?! Tem certeza? Como é que você sabe?
CARCEREIRO – Ora, como é que eu sei! O alvará está aqui na minha mão. O diretor mandou a senhora recolher seus pertences. A senhora já conhece o procedimento? Antes, tem de passar no serviço médico pra fazer a biometria, exame de sangue, a rotina completa.
CARMEN – (para a companheira) Eu nem acredito, colega. Estava faltando ainda um ano e oito mês...
SUZANA – Não reclame; notícia boa a gente comemora.
CARMEN – É que uma vez fizeram isso só de maldade com uma presa. Era tudo mentira. Ela só ia ser transferida de pavilhão...
SUZANA – Não, não pense assim. Alguma coisa boa pode ter acontecido no seu processo.
CARCEREIRO – Vai ver que o doutor que está lá fora pediu um habeas corpus...
            CARMEN – Ah o meu advogado... e por que o cretino não fez isso antes?
            SUZANA – (ajudando a recolher uma muda de roupa) Vai em paz... fico feliz por você.
         CARMEN – (abraçando-a) Gostei de ter te conhecido, colega.  Escuta um conselho: não dá moleza pra essa gente aqui não. Esse povo não presta! Até outro dia!
            SUZANA – Te cuida.
            A grade abre, Carmem sai e entra outra presa que observa Suzana. Cada uma fica sentada no catre a seu canto. Reduzem-se as luzes deixando-se ver as duas na penumbra, apartadas.

Cortina.



CENA 3



                Apartamento de Eduardo Wallenstein. Entram.

EDUARDO – Pode se sentar. Fica à vontade.
MELISSA – Obrigada.
EDUARDO – Vou pegar alguma coisa pra gente beber.
MELISSA – Eu não bebo, lembra?
EDUARDO – Mas na semana passada você bebeu.
MELISSA – É que era uma noite especial.
EDUARDO – Deixa disso. Só um pouquinho.
MELISSA – Por um pouquinho Alexandre perdeu um império, lembra?
EDUARDO – Ei, essa frase é minha! Pois para seu governo, doutora Melissa Fausto, (aproximando-se e beijando-lhe o pescoço) a noite de hoje será ainda mais especial para nós...
MELISSA – Ah é? Você parece muito mal intencionado.
EDUARDO – Prefere cerveja ou vinho?
MELISSA – Ai, eu não deveria, viu. Mas você está demais hoje. Só uma taça de vinho, está bem?
EDUARDO – Do meu preferido.
Entra para a cozinha, enquanto ela fica examinando os CDs.
MELISSA – Você gosta de música?
EDUARDO – E quem não gosta...
MELISSA – Você tem a coleção completa da Marisa Monte!
EDUARDO – Sim, minha ex-namorada adorava. Eu comprei pra dar de presente, mas aí a gente acabou.
MELISSA – Ah é? Posso ficar com o presente?
EDUARDO – Não sei... ainda não. Vai depender do seu comportamento.
MELISSA – Você é malvado. Eu adoro essa música aqui “Bem Que Se Quis”.
EDUARDO – Ué, põe pra tocar então.
                Toca a música baixinho.
                MELISSA – Como é o nome da sua ex?
                EDUARDO – Vanessa.
                MELISSA – Ah eu conheço! É aquela promotorazinha chata.
                EDUARDO – Não fale assim; ela é gente boa. Por que você diz isso?
                MELISSA – Sei lá. É o jeito que ela me olha, sabe, como se estivesse me examinando de cima a baixo. Odeio quem me olha assim.
                EDUARDO – Talvez esteja te achando bonita.
                MELISSA – Fala sério.
                EDUARDO – Ou talvez esteja só com ciúme de você.
                MELISSA – Acho mais provável. Ela sabe que a gente está ficando?
                EDUARDO – Não tenho a menor idéia, mas não importa. Vamos brindar?
                MELISSA – Vamos. Um brinde... a quê?
                EDUARDO – Ao nosso amor nesta noite.
                MELISSA – Que a gente se conheça um pouco melhor esta noite!
                EDUARDO – Gostei: que a gente se conheça tal como veio ao mundo.
                MELISSA – Você e suas frases de duplo sentido.
                EDUARDO – (sorrindo) Esta noite quero conhecer o teu verdadeiro ser, sem os véus da convenção social.
                MELISSA – Calma, Eduardo. Está cedo.
                EDUARDO – Você quer um queijinho?
                MELISSA – Quero um queijinho e um beijinho.
                Com um beijo, Eduardo levanta-se para preparar um tira-gosto na cozinha, enquanto Melissa vai secretamente ao lavabo e derrama parte de seu vinho na pia.
                EDUARDO – (retornando) Posso tocar violão pra você?
                MELISSA – Ah você sabe tocar violão?
                EDUARDO – Não sou nenhum Paco de Lucía, mas...
                MELISSA – Que música você vai tocar?
                EDUARDO – Uma música que eu mesmo compus.
                MELISSA – Olha só! Você também é compositor.
                EDUARDO – Terminei a letra outro dia; se chama SERENATA.
                MELISSA – Você fez pra qual das suas mil ex-namoradas?
                EDUARDO – Pra nenhuma especificamente. Pra uma mulher dos meus sonhos, que não existe.
                MELISSA – Então eu posso me apropriar dela?
                EDUARDO – Fique à vontade. É pra quem quiser admirar essa idéia de mulher.
                MELISSA – Humm! Me conta aí como é essa mulher...
                EDUARDO – Pensando bem, ela até me lembra você, viu. É misteriosa assim como você.
                MELISSA – Você me acha misteriosa, é?
                 EDUARDO – Bastante... desde quando você me contou aquela história do fosso.
                MELISSA – Qual história? Ah, da Garganta do Diabo você quer dizer.
                EDUARDO – Um pouco sinistra. Você invocou mesmo o Diabo lá no meio das Cataratas?
                MELISSA – Mais ou menos. Naquela época, eu tinha uns 16 anos e era muito revoltada, sabe, porque meus pais tinham se separado; eu só escutava rock e andava com uma galerinha esquisita. (mostra o pé) Tatuei até uma caveira aqui ó.
                EDUARDO – Você escutava aquelas bandas satanistas?
                MELISSA – Sim, aquelas da Noruega... eu sabia todas as letras de cor. Eu era uma garota alternativa que escutava rock e lia O MUNDO DE SOFIA.
                EDUARDO – E você ainda entra na calada da noite no Parque Nacional?
                MELISSA – Não! Isso era coisa de adolescente. Hoje em dia o controle está bem mais rigoroso.
                EDUARDO – Graças à nova legislação ambiental.
                MELISSA – A nossa profissão é tão sem graça, não é, Eduardo? O Direito não deixa nenhuma margem à aventura, à poesia, aos contos de terror.
                EDUARDO – É verdade, eu concordo. Falando em poesia, posso tocar a canção pra você?
                MELISSA – Mas é claro. Estou louca pra ouvir.
         
              O ator canta ao violão a SUITE NORDESTINA II – SERENATA, de Nonato Luiz. A letra para a melodia é:

A lua vai tocando uma sonata
Para roubar a minha serenata
Ó lua, vai
Flutua, vai
Boiando... flor de prata

Quando a morena acena da janela
A lua vem dormir nos braços dela
Ó lua, vem
Pra rua, vem
Pra mim, rosa amarela

A moça me esperava na ladeira
Me namorava feito brincadeira
Ó moça, quem
brincou fui eu
co’ espinho da roseira

Te esperarei, morena, na capela
Terno, gravata e cravo na lapela
A lua cai...
Bem nua vai
Sonhando a minha amada

Enquanto ele toca a canção, absorto em sua música, ela enche as duas taças de vinho, mas discretamente afasta-se e trata de derramar metade da sua.  

                MELISSA – Bravo! Adoro canções que falam da lua.

                EDUARDO – Está gostando do vinho, hein.

                MELISSA – Está uma delícia, mas não posso tomar muito. Amanhã tenho que trabalhar.

                EDUARDO – Amanhã é sábado.

                MELISSA – Eu sei, mas tenho que ir ao escritório. Tenho um serviço pra entregar ao meu chefe.

                EDUARDO – Você devia era cobrar hora extra do seu chefe.

                MELISSA – É mais fácil ele me demitir e contratar outro do que pagar hora extra. Infelizmente não sou funcionária pública: não tenho essas mordomias.

                EDUARDO – Minha mãe dizia: vida boa é a do vizinho.

                MELISSA – Estou brincando.

                EDUARDO – Acho que vou tomar um copo d’água. Estou ficando um pouco bêbado já.

                MELISSA – É porque você não comeu nada. Não se pode beber assim...

                EDUARDO – Você também quer um pouco d’água?

                MELISSA – Não, obrigada. Estou bem.

                Eduardo vai à cozinha beber água.

                MELISSA – Agora é a minha vez de diverti-lo com uma citação clássica, doutor Wallenstein.

                EDUARDO – (sentando-se zonzo) Qual?

                MELISSA – O vinho não é uma bebida para se beber cansado; do contrário, embriaga mais rápido.

                EDUARDO – Ah é? Onde está dito isso?

                                MELISSA – N’O Banquete, de Platão. Estavam os filósofos da Grécia discutindo o Amor. Um poeta ficou admirado com a sabedoria de Sócrates e mais espantado ainda em saber que Sócrates jamais se embriagava com vinho.

                EDUARDO – (bocejando) Sei.

                MELISSA – Aí Sócrates elogia uma mulher chamada Diotima, sua professora em matéria de Eros. Para escândalo geral, Sócrates revela aos presentes que essa mulher lhe ensinou um segredo: o Amor não é um deus. Eros é um gênio que liga o humano ao divino, enviando mensagens dos deuses para os homens e transmitindo os desejos dos homens para os deuses.

         EDUARDO – Estou passando mal...

O juiz adormece na poltrona do sofá, sob o efeito de algum sedativo. Meia-luz no palco.

MELISSA – (observando e prosseguindo naturalmente) E começou a explicar a Sócrates como nasceu o Amor. Dizia que o Eros é filho da Carência e do Excesso, por isso apresenta características ora da mãe, ora do pai. (observando-o com um rabo de olho, continua) Aí no final do Banquete, o jovem poeta se levanta e vai-se sentar ao lado de Sócrates. Nesta hora alguém que foi embora esqueceu a porta aberta e entra uma banda de foliões carnavalescos no recinto. É aquela confusão! Os convidados são obrigados a beber o resto do vinho a goladas (bebe o resto de sua taça).
               
                Observa se Eduardo está completamente caído de sono e começa a andar pelo apartamento procurando alguma coisa.

MELISSA – (prossegue, revirando gavetas cuidadosamente) Alguns dos presentes vão embora. Tem um sujeito que fica lá embriagado, caído de sono; quando ele acorda, já com os primeiros raios de sol, você não vai acreditar, Eduardo... Você acredita que estava lá o Sócrates, firme e forte, o poeta Agatão e aquele dramaturgo, o Aristófanes? Os três bebiam numa enorme taça de vinho, passando a taça de um para o outro como se fosse uma cuia de tereré. A essa altura, ninguém lembra direito o que eles estavam discutindo, mas era alguma coisa a respeito da natureza do drama e se ouvia a voz de Sócrates provando por A mais B que o talento necessário para escrever uma tragédia era o mesmo para escrever uma comédia. E que um comediógrafo tinha de ser um grande artista da tragédia também. Aí lá pelas tantas, os dois – Agatão e Aristófanes –  foram adormecendo também, sob efeito do álcool, (guardando algo no bolso) cada um tombando pra um lado. Até que Sócrates (caminhando na ponta dos pés) acomoda os seus dois últimos interlocutores na poltrona (ajeitando-o no sofá) e vai pra casa.

Retira-se à meia-luz.        

Cortina.




CENA 4

Escritório ZAMBETTA & ADVOGADOS ASSOCIADOS. Dr Bruno Zambetta conversa com Chang Lu, o poderoso chefão.

CHANG LU – Eu te dei uma missão e você não executou.

ZAMBETTA – Calma, chefe. Ela já deve ter conseguido alguma coisa.

CHANG LU – E por que não deu notícia?

ZAMBETTA – É uma missão muito arriscada. Dei ordens pra ela ser cautelosa e não deixar nenhuma pista.

CHANG LU – (impacientando-se) Liga de novo. Liga de novo.

ZAMBETTA – (telefonando) Não está atendendo. Vou enviar outra mensagem.

CHANG LU – Seu incompetente, a sua vida e a minha dependem disso.

ZAMBETTA – Eu sei, chefe.

CHANG LU – Você quer ficar de molho na piscina de sal?

ZAMBETTA – Deixa comigo, chefe. Eu vou pessoalmente na casa dela arrancar esses documentos.

CHANG LU – Você não vai sozinho. Meus rapazes vão com você.

Saem. Do outro lado está a casa de Melissa, que acorda de camisola com a campainha tocando.


MELISSA – Ai, quem interrompe o sono da princesa? (com dor de cabeça) Que horas são? Tenho que ir para o escritório... Ai, eu não acredito! Eu tive coragem! E agora? O que será que eles querem fazer com o Eduardo? Será que vão matá-lo? Eu não quero que o Eduardo morra... Eu não devia ter feito isso! Será que eles estão planejando matar um juiz? Não, eu não acredito, o Dr Bruno não seria capaz. Deve ser a defesa num processo grande. Mas mesmo assim! O que é que eu fiz? Isso é muito errado. Vou desistir dessa ação: invento uma desculpa qualquer, saio desse escritório, peço as contas. Tem algo de muito podre nessa história... Não faz parte dos honorários de um advogado roubar os documentos de um processo. Qual é a desculpa que vou inventar pra não aparecer no escritório hoje? Vou dizer que bebi e estou com muita ressaca, não é mentira...

Tocam novamente a campainha e batem à porta.

MELISSA – Mas quem será? (gritando para a porta) Espera um minuto! Preciso me vestir!

Mais pancadas à porta.

ZAMBETTA – Doutora Melissa, abra a porta, por favor.

MELISSA – Ai, ai, ai. Ele veio buscar! E agora? Estou frita. (escondendo coisas) Preciso esconder esse pendrive e esses papéis. Ai, o Eduardo vai me matar. Não, eles vão é me matar. Será que estão planejando matar o Eduardo? Como é que eu fui entrar numa roubada dessa...

Arrombando a porta, entram Dr Bruno Zambetta, Chang Lu e seus homens.
ZAMBETTA – Onde está o relatório de inteligência e o pendrive com as fotografias?

MELISSA – Eu lhe disse: não consegui nada ainda.

CHANG LU – (agarrando-a pelo cabelo) Deixa comigo interrogar a mocinha. A senhora vai dizer onde estão as fotos e o relatório.

MELISSA – Eu não tenho nada, eu juro. Não tive tempo ainda...

CHANG LU – Mentira! Você estava ontem à noite no apartamento dele. Nós te vigiamos.

MELISSA – Mas eu não encontrei nada!

CHANG LU – Vadia mentirosa, (apontando os encapuzados) eles te viram sair com uma pasta na mão. (para eles) Procurem aí. Vamos encontrar.

Espancam-na. Fica caída no chão. Vasculham a casa.
MELISSA – (chorando) Eu não tenho nada. Eu não tenho nada.

ZAMBETTA – Melissa, facilite as coisas. Diga logo onde está.

MELISSA – (chorando) Eu não sei. Eu não tenho.

ZAMBETTA – Sua vida e a minha dependem dessas fotos.

MELISSA – (chorando) Mas eu não tenho.

ENCAPUZADO – Chefe, é isso aqui?

CHANG LU – Mostra pra ele.

ZAMBETTA – É isso mesmo. Está vendo, chefe? Eu lhe disse que ela ia fazer o serviço direitinho.

CHANG LU – (a ela) A senhorita tem sorte: com um pouco mais de tempo, eu ia te amarrar nessa caminha e cheirar teu pescocinho... E te fazer um carinho bem gostoso...

ZAMBETTA – É uma boa moça: está tudinho aqui. Vamos indo?

ENCAPUZADO – É pra levar ela com a gente, chefe?

ENCAPUZADO – A gente faz uma festinha com ela lá no caldeirão...

ZAMBETTA – A vizinhança está estranhando o nosso carro parado ali na porta. É melhor a gente se mandar logo.

ENCAPUZADO – É um desperdício deixar esse piteuzinho, chefe. Deixa a gente levar...

ZAMBETTA – O vizinho pode ter ligado pra polícia, chefe. Vai chamar muito a atenção.

CHANG LU – Deixa a vadia aí. Vambora.

Saem. Toca o segundo movimento de LA CATEDRAL, de Agustín Barrios. Melissa fica no chão, em prantos. Cortina.

domingo, 14 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 1 (Cenas 1 a 3)

Por Frederico Araújo


Após mais um longo período de secura criativa, emerjo enfim com uma inspiração que não reconheço ser minha. Agradeço ao meu amigo do peito Eduardo pela insistência com que me cobra um registro de minha temporada como cônsul na fronteira. Mal sabia eu como trazê-lo à pena, pensando até que o mais natural seria um ensaio acadêmico, penteado, virgulado, lambido, sobre o Visconde do Rio Branco ou coisa que o valha. Escrever um romance estava completamente fora de minha capacidade e envergadura intelectual. Uma epopéia poética? Nem se fala! Pois eis que, sem querer, brotou-me de um jorro, ao longo de um intenso fim de semana, uma peça de teatro intitulada OS CONFINS.

         
DRAMATIS PERSONAE:

Suzana de Jesus – diarista
Daniel – filho da diarista
Amiga – amiga de infância de Daniel
Dr Eduardo Wallenstein – jovem juiz
Dra Melissa Fausto – advogada, namorada de Eduardo
Dra Vanessa Maia – promotora, namorada de Eduardo
Chang Lu, o Diabo – chefão do tráfico
Dr Bruno Zambetta – advogado do tráfico
Encapuzado 1 – matador de aluguel
Encapuzado 2 – matador de aluguel
Carmen Duralex – companheira de cela de Suzana

figurantes:
secretária do juiz
capangas do tráfico
cantor de barzinho




Antes de começar a peça, enquanto os espectadores tomam seus assentos na plateia, o som do teatro deve tocar o primeiro movimento de LA CATEDRAL, de Agustín Barrios.

CENA 1


Cena de uma audiência judicial. Mesa em forma de T. Entram Dr. Eduardo, o juiz, com sua secretária e sentam-se revirando papéis. Entra Dra Vanessa, a promotora, e se cumprimentam, trocando olhares lascivamente.
EDUARDO – Bom dia, Dra Vanessa! (sorrindo galante)
VANESSA – Bom dia, Excelência! (retribuindo simpatia)
EDUARDO – Vossa Excelência está elegante hoje.
VANESSA – Obrigada! Gentileza sua.
EDUARDO – Bem, vamos começar então. Já que está presente o Ministério Público... Vou apregoar o réu, aliás, neste caso (consultando papéis), a ré. Senhora Suzana de Jesus! (em tom de pregoeiro).
Entra Suzana, de cabeça baixa. Pára um instante em frente ao juiz. Ele acena para que ela tome assento.
EDUARDO – O sobrenome da senhora... (ainda consultando papéis)
Retira-se a figurante que faz a secretária do juiz.
SUZANA – Sobrenome tem não, senhor (sentando-se). Meu nome é só este mesmo: Suzana de Jesus.
EDUARDO – Tudo bem, não é a primeira vez que vejo gente sem sobrenome aqui... A senhora está sendo acusada de tráfico de entorpecentes.
SUZANA – Sim, senhor.
EDUARDO – A senhora reconhece essa acusação?
SUZANA – Não, senhor.
EDUARDO – Mas me parece que a senhora confessou para o delegado que a droga era sua.
SUZANA – Sim, é verdade. Se o senhor me permite...
EDUARDO – Pois não.
SUZANA – Eu trabalho como diarista. Naquele dia, eu estava trabalhando normalmente na casa de uns libaneses, que eu limpo às terças e quintas. O meu celular tocou: era o meu filho, que estava preso na Ponte da Amizade. Chorava no telefone me dizendo: - Não fui eu, mãe. Não fui eu, mãe! Fiquei desesperada. Pedi licença ao patrão. Peguei um mototaxi e fui pra ponte.
EDUARDO – E aí?
SUZANA – Cheguei lá, tava ele sentado assim de lado numa sala. Dei logo um tapa nele pra ele aprender. O policial até gostou. Falei pro meu filho: - moleque, eu te falei pra tu não ir na história desse chinês maldito. Olha bem o que te aconteceu, Daniel! Meu filho só calado, doutor. O policial já foi pegando a mochila dele e levando pra perícia. Aquilo foi no dia do aniversário dele, o meu filho estava fazendo 18 anos.
VANESSA – (interrompendo) Excelência, ela assumiu a droga como se fosse dela... para o filho não ir pra cadeia.
EDUARDO – Como assim? Ela não estava presente no momento do flagrante! E o que disse a perícia?
SUZANA – Policial também tem filho, doutor. O senhor imagine: era o dia que o Daniel ia fazer 18 anos. Eu implorei pra escrivã que estava fazendo o B.O., pra ela trocar os nomes, pra eu ir presa no lugar dele.
EDUARDO – Sei... (pensativo) Um belo gesto de amor, minha senhora. E o Ministério Público como opina neste caso?
            VANESSA – Eu acho que podemos fazer uma transação (pausa). Apesar de juridicamente ter um flagrante contra a Senhora Suzana, o Ministério Público propõe uma delação premiada. Se a ré revelar à Justiça quem é o dono da droga...
            Suzana baixa a cabeça, com medo.
            EDUARDO – A senhora aceita a oferta do Ministério Público?
            Suzana fica calada, pensativa.
            VANESSA – Na verdade, Excelência, as investigações apontam que foi o próprio traficante quem mandou avisar a polícia sobre essa mula, pra despistar um carregamento muito maior. Isso é um golpe comum aqui na região.
            Suzana levanta a cabeça, decidida.
            SUZANA – Eu aceito, doutor. Se eu falar pro senhor quem é o dono da droga, eu vou sair da cadeia?
            EDUARDO – Depende. A senhora poderá ser absolvida ou receber uma pena menor, ficar menos tempo na cadeia... Depende da sua colaboração com a Justiça.
            SUZANA – O nome dele é impronunciável.
            EDUARDO – É árabe?
            SUZANA – Não. Na realidade, ele tem vários nomes. Lá no bairro todos chamam ele de muitas formas diferentes, porque o bicho não gosta de ser identificado.
            VANESSA – Mas a senhora pode declinar alguns desses nomes?
            SUZANA – Pra lá pra nós, a gente chama ele de O China. Mas também é conhecido como O Rei, O Cara, O Tal, O Pai da Mentira, O Jorge, O Humberto, O Padrinho, O Painho, O Osvaldo, O Capo, El Jefe, O Fernando, O Carioca.
            VANESSA – Desse jeito é difícil. A senhora não está ajudando nada... (impacientando-se)
            EDUARDO – (dirigindo-se à promotora) Mas, doutora, você sabe que é assim mesmo no submundo do crime. Os criminosos têm muitos vulgos.
            SUZANA – E ele tem mais nomes. É porque eu não me lembro de todos. Se eu pudesse ajudar...
            EDUARDO – Me diga uma coisa. Como foi que o seu filho conheceu esse traficante?
            SUZANA – Ah doutor... Foi lá no bairro mesmo. Eu trabalho o dia inteiro. O senhor sabe como é que é. O menino fica na rua, nem sempre eu posso vigiar por onde ele anda. São as más companhias.
            EDUARDO – Ele entrou no tráfico por necessidade?
            SUZANA – (ofendida) Necessidade o quê, doutor? Eu eduquei meu filho dando tudo de bom pra ele. Nunca deixei faltar nada, nem roupa de marca, relógio, celular novo. Eu dava dinheiro, ele ia com os amigos dele pro Paraguai comprar. Daniel sempre teve tudo. Paguei até colégio particular lá no bairro, doutor, o melhor que eu podia dar. Procurei dar o melhor pra ele, doutor. Passo o dia fora, trabalhando na casa dos outros.
            VANESSA – Onde a senhora mora?
            SUZANA – Na Vila C.
            EDUARDO – Então como foi que o Daniel entrou no tráfico?
            SUZANA – Ele sempre gostou de aventura. Nunca satisfeito, vive reclamando do que eu boto em casa pra comer. Por mais que a mãe dele tenta agradar... A vida da gente é assim mesmo... Aí um amigo dele perguntou se ele não queria conhecer o tal do Chan... Tchan... Chang... Eu não sei falar esses nomes complicados, doutor. É o Homem-Lá, o Bode Velho como eu chamo logo. E o meu Danielzinho passou a dizer que o Outro agora é que era o padinho dele. O senhor imagine! Eu que batizei o Daniel na Igreja, dei meu irmão pra ser padrinho, meu finado irmão, sou obrigada a escutar uma história dessa! (chora)
            EDUARDO – Se acalme, dona. Esse negócio de padrinho ele deve ter visto em algum filme.
           SUZANA – Não é não, senhor. Todo mundo lá no bairro diz que é afilhado do homem. É uma febre.
            VANESSA – E esse padrinho dava algum presente para o seu filho?
            SUZANA – Dava, sim senhora, alguma coisinha. Só que prometia mais do que dava.
EDUARDO – O que ele prometia para o seu filho?
SUZANA – (gesticulando) Chamava o meu filho lá na mansão dele, mostrava todas aquelas coisas, as correntes de ouro, os carrões, mulher da rua na piscina; fazia churrasco o fim de semana inteiro com artista de samba, bebida... E dizia assim pro Daniel: “Olha, eu vou te dar tudo isso se você for fiel a mim...”.
            EDUARDO – A promessa de subir na vida sem esforço.
            SUZANA – O Animal seduzia o meu filho dizendo assim: “Você é estudado, Daniel, ainda vai se tornar o meu braço direito na contabilidade”.
            VANESSA – Que cachorro!
            SUZANA – Então, doutor? Vou poder sair da cadeia?
            EDUARDO – Depende, senhora. Isso vai depender do desenrolar do processo. (dirigindo-se à promotora) Bem, por hoje eu estou satisfeito. (voltando-se para a ré) A senhora fale com o seu advogado ali na saída, que ele vai lhe informar a data da próxima audiência. Declaro esta sessão encerrada! (em tom de pregoeiro)
            Suzana retira-se de cabeça baixa.
EDUARDO – (virando a cabeça, procurando) Cadê a minha secretária? (dirigindo-se à promotora) Doutora Vanessa... Hummm! Eu gosto muito desse seu perfume, sabia?
Vanessa sorri.
EDUARDO - (voltando a si) Doutora, qual é o próximo caso que temos aí? (consultando papéis) Vamos depressa que a nossa pauta hoje está cheia.
Redução de luzes. Cortina.



CENA 2





Palco dividido em duas partes iguais. Do lado esquerdo, o apartamento do jovem magistrado; do lado direito, a terraça de um bar. A cortina cobre o lado direito do palco até a metade da cena, de modo a conferir mais movimento e concentrar as atenções sobre o que se passa no apartamento do Dr Eduardo. O estilo da decoração é de um apart-hotel simples, tipo sala e cozinha americana; de mobília uma pequena mesa de sala, um sofá e uma geladeira. O juiz está chegando do trabalho naquela segunda-feira. Monologa.
EDUARDO – (tirando o terno e espreguiçando) Ai ai! Que dia! Que segunda-feira!
Larga o blazer e a gravata sobre o sofá. Dirige-se até a geladeira e pega uma garrafa de vinho pela metade. Saca a rolha e pega uma taça, provando-o analiticamente.
EDUARDO – Está um pouco avinagrado. Mas também! (observa o rótulo) Quando foi mesmo que eu abri essa garrafa? Sexta? Ou foi sábado? Não, foi sábado! Putz, mas essa geladeira não tem nada pra comer, nem um pedaço de queijo! Vou ter que sair pra comer alguma coisa na Av. Brasil. Ah! Vou ligar pra Doutora Vanessa... (pronuncia a palavra “doutora” pausadamente, com ironia, pela intimidade que têm). Deixa eu ver se tem alguma mensagem dela.
Pega o celular. Disca o número.
EDUARDO – Oi, Vanessinha! Como você tá? Que dia, hein! Que dia esse nosso hoje! Escuta, você não quer fazer um lanche e tomar um chope daqui a pouco? Ah, daqui a uma meia hora, mais ou menos. Você quer que eu passe aí pra te pegar ou a gente se encontra lá? Ah, em qualquer lugar, ali na esquina mesmo, onde tem aquela sorveteria, sabe?... Isso! Te espero lá então, daqui a uns quinze minutos. Pode ser? Combinado!
Troca de roupa atrás do biombo. Mais descontraído, veste uma calça jeans, camisa polo e tênis. Vai-se deslocando em direção ao lado direito do palco, enquanto a meia-cortina vai abrindo e descerrando a terraça de um bar. Vanessa já está lá esperando. No bar ao ar livre, há mesas e cadeiras vazias. Um garçom. Um músico com um violão. Eduardo chega e cumprimenta Vanessa beijando-a no rosto.
EDUARDO – E aí, tudo bem?
VANESSA – Ah, tudo indo (um pouco desanimada). Fiquei pensando no caso daquela mãe, sabe?
EDUARDO – Eu também.
O músico dedilha baixinho UN SUEÑO EN LA FLORESTA de Agustín Barrios. O tom da conversa é meditativo, pausado, intercalado por breves silêncios entre os dois.
VANESSA – Fiquei pensando como uma mulher é capaz de se doar tanto por um filho.
EDUARDO – É o amor.
VANESSA – É um mistério, isto sim.
EDUARDO – O amor é um mistério.
VANESSA – Pode ser.
EDUARDO – Bonita essa música, não é?
VANESSA – Sim, mas é triste.
EDUARDO – Você está triste hoje?
VANESSA – Não... acho que estou só cansada.
EDUARDO – Vou pedir um chope. Você quer um?
VANESSA – Sim, por favor. Fiquei pensando na Suzana, uma mulher tão jovem, mas fisicamente acabada (com ênfase)... O sofrimento está estampado no rosto dela. A mulher não tem nem 40 anos e já tem um filho com 18.
EDUARDO – Ela deve ter tido filho muito nova.
VANESSA – Fiquei pensando na minha vida afetiva (erguendo o olhar da mesa e encarando-o): 34 anos, vários namorados, baladas, nenhum compromisso, nem casamento nem filho.
EDUARDO – Ih, você tá parecendo a minha mãe, me cobrando um neto.
VANESSA – Eu queria ter uma filha.
EDUARDO – Por que não um filho?
VANESSA – Não sei. É um sonho que eu tenho. Minha filha iria se chamar Diana.
EDUARDO – Por que esse nome?
VANESSA – É a deusa grega da caça.
EDUARDO – Eu acho que não é grega; é romana.
VANESSA – (pegando na mão dele sobre a mesa) Eu nunca gostei do meu nome. Eu queria me chamar Diana.
EDUARDO – Por que você não escolhe uma divindade mais brasileira? Sei lá, pesquisa alguma coisa na mitologia guarani, por exemplo. No candomblé existe um deus da caça chamado Oxóssi.
VANESSA – Mas Oxóssi é um deus masculino; eu quero ser uma deusa feminina.
EDUARDO – Lá vem você de novo com esse papo de feminismo.
VANESSA – Ih você tá é por fora. Não é nada disso.
EDUARDO – Nossos colegas da UnB odiavam as nossas conversas de antropologia, lembra?
VANESSA – Claro que eu lembro. Bons tempos... Eu era tão mais nova. Nem acredito que já faz 10 anos que a gente se formou.
EDUARDO – Você nunca mais encontrou ninguém da nossa turma?
VANESSA – Não, só você.
EDUARDO – É muita coincidência a gente estudar juntos na faculdade, passar no concurso e vir parar em Foz do Iguaçu!
VANESSA – É mesmo, tem razão (pegando na mão dele de novo).
EDUARDO – Minha querida deusa da caça, a propósito, você sabe o nome dessa música?
VANESSA – Não... (carinhosa, inclinando-se sobre o peito dele)
EDUARDO – (com sotaque) Un sueño en la Floresta de Agustín Barrios, guitarrista paraguaio. (com ar professoral) O Paraguai tem um dos maiores compositores eruditos de todos os tempos, você sabia?
VANESSA – Eduardo (pronuncia o nome dele como uma gata no cio), você quer casar comigo?
EDUARDO – O quê?! Não escutei direito.
A música pára. Silêncio por um instante.
VANESSA – Eu perguntei se você quer casar comigo.
EDUARDO – O que é isso, Vanessa? Estou muito novo pra casar.
VANESSA – Você tem a mesma idade que eu.
EDUARDO – Mas eu não quero casar agora. Tem muito chão pela frente... Aliás, nem sei se a gente está namorando. A gente está namorando ou ficando?
O músico do bar começa a tocar O MEU GURI, de Chico Buarque. O ritmo da conversa fica ainda mais lento, intercalado por longos silêncios
EDUARDO – Ah essa música é linda, você gosta?
VANESSA – Gosto. Quem não gosta? (decidida) Eduardo, você fala que tem um longo chão pela frente. Pois eu acho que muita água já rolou por baixo dessa Ponte da Amizade...
EDUARDO – (desviando o assunto) Sim, o rio Paraná é o segundo maior do Brasil. Aliás, da América do Sul.
VANESSA – Não, doutor Eduardo. Estou falando de águas em sentido figurado. E me refiro à nossa amizade.
EDUARDO – Ah bem.
Nova pausa na conversa. Os dois ouvem atentamente a música.
EDUARDO – Não sei se fiquei impressionado com aquela história, mas essa canção me fez lembrar outra vez o caso da Suzana de Jesus.
VANESSA – Eduardo, me diz uma coisa. Quem era aquela bonitinha que te deu uma olhada no forum hoje de manhã?
EDUARDO – Alguém olhou pra mim, foi?
VANESSA – Não se faça de desentendido. Aquela mulher de tailleur vermelho, que só faltou te comer com os olhos, parecendo a Pomba-Gira.
EDUARDO – Nossa! Não seja cruel com a moça. Aquela é uma advogada muito séria, doutora Melissa Fausto.
VANESSA – Sei.
EDUARDO – Bom, acho que estou começando a ficar bêbado com essa cerveja. Amanhã tenho uma audiência muito cedo. Podemos pedir a conta?
VANESSA – Por mim estou satisfeita. (despeitada) Não tenho mais perguntas, Ex-ce-lên-cia.
EDUARDO – Não seja boba.

Cortina. A música continua até a próxima cena.




CENA 3


Daniel irrompe no palco esbaforido. Está fugindo dos pistoleiros que querem matá-lo. O cenário é a periferia de Hernandarias. Bate à casa de um amigo de infância. Casa simples, de porta e janela. Deve-se entrever nos fundos um grande quintal com o desfiladeiro para o rio.
DANIEL – Socorro! Socorro!
AMIGO – O que foi que houve?
DANIEL – Os homens querem me pegar, cara. Tô ferrado!
AMIGO – Entra aqui, entra.
Daniel abriga-se. Os dois ficam agachados debaixo da janela, sussurrando.
DANIEL – Mamãe foi presa.
AMIGO – Tua mãe, cara? Porra, até tua mãe entrou no tráfico?
DANIEL – Claro que não, pô.
AMIGO – Então o que foi? Ela matou O Coruja?
DANIEL – Também não. Preciso te contar. É uma longa história. Cadê aquele dinheiro que eu pedi pra você guardar? Ainda tem ele aí?
AMIGO – Tenho. Tá aqui ó. Não gastei não.
Tira o dinheiro do bolso e entrega a Daniel. Conta o dinheiro e guarda.
DANIEL – Cara, vou pegar um ônibus pra Assunção. Eles vão me matar, eu tenho certeza. Se acontecer alguma coisa comigo, diz à mamãe que eu amo ela, por favor. E que eu me arrependi antes de morrer.
Chegam os pistoleiros, gritando e forçando a porta.
ENCAPUZADO 1 – Bora, abre essa porta! Perdeu! Perdeu!
ENCAPUZADO 2 – Você tá morto, Danielzinho. Já era, velho! Abre logo!
DANIEL – Cara, ferrou! Faz esse favor pra mim. Diz à mamãe que eu amo ela e que eu me arrependi antes de morrer. Vou pular daqui mesmo! Adeeeeeus...
Se joga no vale do rio Paraná.
ENCAPUZADO 1 – (dirigindo-se ao outro) Rápido, vamu dar a volta pelo outro lado, ele tá fugindo pelo rio.
Saem correndo pelo lado oposto do palco. Depois de alguns segundos, voltam os dois.
ENCAPUZADO 1 – Você viu ele por aí?
ENCAPUZADO 2 – Não.
ENCAPUZADO 1 – Olha lá! (apontando para o céu)
ENCAPUZADO 2 – O quê? É a alma dele indo pro céu?
ENCAPUZADO 1 – Não, animal. São os urubus! Você não tá vendo?
ENCAPUZADO 2 – Ah sim. Agora eu tô vendo.
ENCAPUZADO 1 – Esse aí já era.
ENCAPUZADO 2 – Virou café-da-manhã de urubu.
ENCAPUZADO 1 – Vambora. Deixa o corpinho dele fedendo lá no rio. Miserável vai inchar d’água. Vai ficar parecendo um sapo.
ENCAPUZADO 2 – Quando o cadáver incha, ele desce boiando na correnteza. Aí é só a gente pegar lá embaixo e costurar a boca dele.
ENCAPUZADO 1 – Que costurar o quê? Ele já tá morto mermo...
ENCAPUZADO 2 – Ué, pra ele não dedurar nós lá no Além!
ENCAPUZADO 1 – Deixa de ser, mané! Vambora que o chefe tá esperando.
Saem. Depois de alguns segundos, aparece Daniel do lado oposto do palco, esbaforido. Olha para um lado e outro... Ouve-se um som mecânico de ônibus (sonoplastia). Daniel acena ao ônibus e corre.

Cortina.