terça-feira, 30 de julho de 2013

Aula de Lógica Cristã Ou Por que não faz o menor sentido uma agenda política religiosa



           O que me irrita na militância política religiosa que cada vez mais vem ganhando espaço no Brasil não é sequer o conteúdo dos valores implícitos nessa agenda, mas sim a absoluta falta de lógica na idéia de uma política cristã. Existe uma razão muito boa para Jesus ter dito “a Deus o que é de Deus, a César o que é de César”: não é uma máxima de sabedoria prática, é um corolário dos princípios mais elementares dessa religião.
            Em primeiro lugar, se aquilo em que os cristãos acreditam é verdadeiro, Deus é onisciente. Não sei se todo fiel tem uma idéia clara das implicações disso: significa que nenhum acontecimento – nem mesmo o mais insignificante – escapa à mente do Criador. É uma idéia tremenda, e seria terrivelmente opressora se a imagem desse Deus onisciente não estivesse associada a Sua misteriosa capacidade de perdão. Dá até para entender a angústia de Raul Seixas quando ele disse: “Eu estava com Deus, e eu tinha medo”[1].
            O segundo ponto é que Deus é onipotente. Ou seja, Ele pode tudo. Pode até mesmo criar uma pedra tão pesada que nem Ele é capaz de levantar, e ainda jogá-la sobre a cabeça de um teólogo petulante. É a Sua vontade, por sinal, que sustenta a realidade deste mundo, e se por um segundo Ele se desconcentrasse, o universo inteiro voltaria ao pó de que foi criado.
            Liguem os pontos. Imaginemos que um Ser tão poderoso tenha inscrito na natureza deste mundo Sua idéia de Bem e de Mal. Imaginemos, ademais, que nosso Criador, por alguma razão misteriosa, alheia ao entendimento dos teólogos, tenha estabelecido preceitos extremamente rigorosos sobre o comportamento sexual da espécie humana. Imaginemos, enfim, que sodomia seja pecado.
            Que esperanças teriam os pecadores de escapar à ira de tão terrível Pai? Mesmo as menores faltas estariam registradas no rol de nossos erros. No Juízo Final, quem houvesse infringido as regras divinas seria inapelavelmente lançado ao Lago de Fogo. Ou seja, se aquilo em que acreditam as correntes mais exaltadas do cristianismo neopentecostal for verdadeiro, os fiéis não precisam mexer um dedo contra os pecadores: Deus se encarregará de puni-los, com meios com que nem sequer podemos sonhar!
            Dito em termos bem simples, o cristão militante é um completo imbecil – comparável, em termos de idiotia, apenas a certas correntes do marxismo e do feminismo. A mensagem que Cristo pregou é uma mensagem de radical ruptura: “o meu reino não é deste mundo”. Esta vida é o campo de batalha do espírito. Aqui bons e maus têm a chance de provar em que barco estarão quando o Dia da Ira chegar. Mas a promessa de que os apóstolos falam não aconteceu: ela virá após a morte, para os mansos, para os piedosos, para os que se mostrarem dignos de amar e de serem amados.      Mais importante de tudo, a salvação é para sempre. O que nos sucede após a morte, portanto, é incomparavelmente mais relevante que aquilo que vivenciamos em nossas vidas. Que são os sofrimentos da carne comparados à infinita beatitude que está por vir? Que são as injustiças sofridas, os insultos e violências, comparados a uma eternidade na companhia da gloriosa Mente que concebeu o mundo?
O cristão com o mínimo de compreensão sobre os preceitos de sua religião sabe que se deve odiar o pecado amando o pecador. Pois é a capacidade de perdoar que pode nos tornar merecedores do perdão divino. Talvez seja possível, no máximo, tentar convidar o pecador a partilhar do destino em que os cristãos acreditam, porém tentar forçar alguém a salvar-se é algo tão absurdo que até os insultos me escapam!
Depois do açúcar refinado, uma das maiores fontes de males da humanidade é a estupidez bem-intencionada. Como muitos de nós em breve devem descobrir, o caminho para o inferno está ladrilhado com ótimas intenções. O cristianismo paladino de nossos tempos, em suas cruzadas para privar as pessoas de meios com que pecar, tem, como era de se prever, contribuído ainda mais para o retrocesso político deste país.
Não se pode ser claro o bastante quanto a isso: não é papel do Estado evitar que as pessoas sejam condenadas ao inferno. Apenas a convicção pessoal e a experiência íntima do amor divino podem dar-nos uma chance, pequena como seja, de salvação. Querer, portanto, impor curas gays, fazer campanhas contra o sexo pré-marital (desestimulando o uso de preservativos) e militar agressivamente contra a constituição civil de novas modalidades de família é um atraso social e espiritual. Absurdo dos absurdos, por exemplo, é a insistência de nossa sociedade em manter a prostituição desregulamentada, tornando possível uma catástrofe de saúde pública cotidiana, que acontece bem debaixo de nossos pios narizes! Não sou capaz de entender que amor é esse, que em nome de uma idéia deturpada de cristianismo impede que as putas tenham direitos trabalhistas e previdenciários mínimos, e que acha aceitável que os pecadores somem às misérias que sofrerão após a morte todo tipo de calamidade sexualmente transmissível!
Sim, inquisidores, eu sei que vocês o fazem por amor aos pecadores – não são, afinal, as torturas a última esperança de salvação para os cronistas? Mas, pelo menos em nome da coerência intelectual, abstenham-se da praça pública! Pois em nada se diminui um fiel que vive numa era de lassidão e perversidade. Pelo contrário: o justo se engrandece quando ele se mantém firme num mundo que o força, de diversas maneiras, a pecar. De uma maneira ou de outra, posso garantir que Deus não precisa da ajuda de vocês para consumar o desígnio ético secreto que Ele estabeleceu para Sua obra[2].
En passant, eu que tenho muitos e grandes defeitos, não seria capaz de condenar homossexuais e putas às torturas infernais; quem dirá Deus, que é infinita inteligência e infinito amor.


[1] Com toda certeza Deus via o que Raul estava fazendo no banheiro, assim como Ele vê também o que você faz por lá.
[2] Um parêntese, aqui, precisa ser feito no que concerne à agenda relacionada à legalização do aborto. Essa complicada questão não diz respeito apenas a uma moralidade religiosa, mas possui uma dimensão ética mundana, já que não está claro a partir de que instante uma criatura viva torna-se merecedora de tutela jurídica. Não deixemos, portanto, a idiotia de alguns grupos (os fundamentalistas religiosos, por exemplo) obscurecerem outras idiotias tão agudas quanto (como a das militantes de um “útero livre”).

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Usando a Lei de Murphy a Seu Favor


 

            Intérpretes mais otimistas costumam considerar a Lei de Murphy de uma perspectiva lógica: “se alguma coisa pode dar errado, ela forçosamente dará errado, desde que tenha tempo o suficiente para isso”. O que não quer dizer que ela dará errado na primeira ou mesmo na segunda tentativa.
            Qualquer observação minimamente realista sobre o Mundo e a posição que o ser humano ocupa nele mostra-nos que não, que a Lei de Murphy está gravada na conformação do real, do mesmo modo, por exemplo, que a Lei da Gravidade. Como muito bem argumentou o Príncipe Sidarta Gautama, o Cosmos é uma gigantesca máquina de infligir sofrimentos, e o fato de sermos criaturas conscientes torna-nos, por excelência, os atores e espectadores das desgraças da vida.
            É claro que, do nosso ponto de vista, enquanto coágulos de matéria aptos à dor, quanto mais pudermos nos livrar do sofrimento, melhor. Afinal, já que não escolhemos as condições em que iríamos viver – pelo menos até onde vai nosso conhecimento! –, é justo desejar a tranqüilidade possível num universo que tende ao mal.
            Como ex-habitante de Recife, graduado em Direito e diplomata, estou profundamente familiarizado com todas as formas de desgraça que podem se abater sobre um mortal. Esse conhecimento empírico do sofrer me permitiu desenvolver certas intuições que se mostraram muitos úteis em minha busca pela tranqüilidade possível.
            Por exemplo, é uma verdade notória que muito raramente o universo concentra toda a maldade que tem reservada para uma pessoa em apenas uma modalidade de aborrecimento. Somos a todo tempo assediados por problemas de diversas ordens, sem relação aparente entre si, mas que se acumulam e se compõem para formar o quadro de nossa miséria – mais ou menos como quando a privada entope no mesmo dia em que esquecemos de pagar o boleto do condomínio. O Universo está à espreita, e tudo de que ele precisa é de uma deixa para nos assolar com abacaxis no trabalho e discussões de relacionamento.
            Uma pessoa inteligente pode usar essa característica do Cosmos a seu favor, e estou convencido de que bastará um exemplo simples para esclarecer essa afirmação aparentemente contra-intuitiva.  
             Imagine-se a cena de um assalariado que tenta voltar para casa no horário do rush. Faminto e exausto, tudo que ele mais deseja é voltar para casa, tirar a roupa social – que lhe apertava todos os meridianos identificados pela medicina chinesa – e despencar no sofá. É do interesse do Plano Geral das Coisas, todavia, que ele passe horas preso no engarrafamento, com calor, sem ter mais o que fazer além de escutar a “Voz do Brasil”. Se alguém será atropelado, se um esgoto irá estourar ou se haverá uma enchente, não importa. O certo é que o Cosmos encontrará alguma maneira de congestionar ainda mais o trânsito, aumentando, assim, a pressão arterial do trabalhador. É a Lei de Murphy em ação.
            A maneira mais inteligente de escapar dessa enrascada é tentar usar o tempo de engarrafamento para fazer alguma coisa relevante como, por exemplo, mandar uma mensagem de celular extensa para a namorada. Minhas observações empíricas mostraram que, não importa quão longo seja o engarrafamento, se o motorista começa a escrever uma mensagem no celular, o carro da frente invariavelmente avança. É um fenômeno cosmológico ainda pouco estudado pelos físicos, uma intervenção subjacente da Lei de Murphy que compensa os efeitos do aborrecimento original. Toda vez que o motorista tentar continuar digitando sua mensagem no celular, o carro da frente andará mais um pouquinho, o que o forçará a interromper o que estava escrevendo. Se o seu principal objetivo fosse efetivamente mandar a mensagem, a Lei de Murphy estaria consumada, e tratar-se-ia de mais um aborrecimento para o rol das misérias daquele indivíduo. Mas se seu principal objetivo for chegar logo em casa, então o sofrimento secundário pode ser uma excelente maneira de amenizar os efeitos do problema inicial.
            E assim, com pequenos avanços, redigindo e apagando uma longa mensagem, é possível avançar quilômetros pelo coração das mais congestionadas metrópoles.  O Universo ficará confuso, e não saberá exatamente onde deverá concentrar sua má-vontade. O gesto do motorista que tenta redigir algo no telefone – um esforço que exige concentração – não pode ser ignorado por uma entidade que existe para aborrecer. Ainda que lhe interesse manter o trabalhador preso no engarrafamento, é tentador demais atrapalhar aquele gesto concentrado, aquela tentativa de comunicação possivelmente tão importante. Pode ser que ele esteja tentando transmitir uma informação a alguém que esteja em perigo, ou talvez ele esteja avisando outra pessoa para não vir por aquele caminho engarrafado. Não, é preciso atrapalhar! Andem os carros!
            Esse é um dos exemplos mais emblemáticos, porém são várias, na verdade, as formas de usar as leis do Cosmos a nosso favor. Por exemplo, se alguém está fazendo um exame e percebe que faltam apenas dez minutos para acabar a prova, sendo que ainda faltam várias questões a serem respondidas, não resta dúvidas sobre o que fazer: é preciso apertar o cinturão, abotoando-o num furo três ou quatro vezes mais apertado do que aquele que se costuma usar. Isso criará uma sensação de desconforto terrível, verdadeira tortura nas entranhas que fará o Universo desacelerar a passagem do tempo, de forma a prolongar o sofrimento. Assim, o aluno que faz a prova terá muito mais tempo para responder as questões, ainda que tenha que tomar cuidado para não deixar a dor atrapalhar sua concentração. Se nem isso funcionar, e a pessoa perceber que faltam dois minutos para o fim da prova, sempre se pode apelar para estratagemas radicais, como, por exemplo, puxar a cueca por trás da calça, de tal modo que ela fique enfiada nos fundilhos. Esse paroxismo do desconforto multiplicará o tempo por dez, e possibilitará que as questões que faltavam sejam respondidas.
            O uso da Lei de Murphy em favor próprio é uma estratégia que só encontra paralelo, em termos de eficácia, no uso da psicologia reversa contra o Universo[1]. É preciso apenas ter algumas precauções, pois, como se sabe, entre as dimensões visíveis habitam platelmintos colossais e sem mente, que esperam apenas uma oportunidade para devorar a alma dos mortais que infrinjam alguma lei fundamental do Ser. É importante não permitir que a realidade se dê conta do engodo, ou seja, deve-se sempre dar sinais de que se está, efetivamente, sofrendo. Caso contrário, não se surpreenda se um rasgo no tecido do real aparecer enquanto você digitava uma mensagem durante o engarrafamento, e cílios prolongados arrastarem-no para um abismo gélido além da soleira do tempo, onde seu cérebro será devorado por ectoparasitas trematódios!


[1] Como se sabe, nada reduz tanto a probabilidade de que algum evento favorável aconteça quanto demonstrações de grande desejo dadas por uma pessoa. O universo tem uma psicologia aparentada com a de uma criança, e está disposto a conceder um benefício apenas nos casos em que acha que um indivíduo não deseja aquilo, ou deseja algo exatamente oposto. 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Do Fundo do Baú: Quem Vai Querer a minha Periquita?

Escrevo a tempo o bastante para ter um passado criativo. O seguinte texto é de 2007, do tempo em que eu (não) sabia o que queria da vida, e foi publicado em meu esquecido livro de crônicas, "A Inteligência numa Casca de Noz".

Porque estou saudoso hoje (e por que será que não tenho mais coragem de escrever textos assim?):




Eduardo Siebra, 22/08/2007 (7:33)


            As ruas, bares e inferninhos pernambucanos foram tomados de assalto pelo Melô da Periquita, sucesso absoluto com sua letra e ritmo obsedantes:

Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita? ( refrão 2x)

Uma águia passou pelo meu quintal
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que tá querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)

Já passou uma semana e essa águia sumiu
Eu não ouvi o grito dela por aqui
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)

Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita?


            Reproduzido em centenas de carrinhos de som que circulam pela cidade vendendo CDs piratas, o Melô da Periquita “chicletou” no inconsciente dos recifenses. Não raro alguém se flagra cantarolando: “a minha periquita, a minha periquita, a minha periquita”.
            Como não podia deixar de ser, toda sorte de intelectuais chicobuarcólatras, jornalistas e, principalmente, professores de gramática – maiores responsáveis, em minha humilde opinião, pela difusão da intransigência sobre o planeta desde os tempos de Roma – já se prontificaram a condenar artisticamente a nova paixão do povão pernambucano. Típico! Em verdade, juízos definitivos sobre manifestações artísticas do vulgo só podem resultar de posturas intolerantes e de leituras superficiais. Afinal, quem são eles para determinar, com sua arrogante sabedoria de gabinete, o que é bom e o que não é para o povo sofrido e trabalhador? Para bem ser sincero, quem pensa assim é não apenas opressor, mas burguês, racista, homófobo, machista e anti-semita.
            Destruamos o preconceito promovendo uma sincera análise deste sucesso, feita com sensibilidade social às nuances e preferências artísticas das massas.

Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita? ( refrão 2x)

            O refrão, sem dúvida, é o fragmento poético de maior vibração lírica. O uso consciente de aliterações, assonâncias e repetições reforça o efeito vibrátil da métrica, de inspiração claramente popular. Em termos formais, percebemos um certo atavismo de soluções líricas dos cantadores medievais – que, diga-se, também se valiam de motes bufos e satíricos para dar vazão a sua criatividade melódica. A prova maior da perfeição dos versos é nossa incapacidade de esquecer o estribilho, de marcante efeito mnemônico. Porém, o refrão destaca-se não só por sua criatividade formal, mas, primordialmente, pelo eficaz uso de metáforas e figuras de linguagem de duplo sentido – recurso amplamente empregado na poesia profana de todos os tempos e lugares. A periquita, aqui, é o passarinho do sujeito poético, amado e cuidado com carinho e afeição. Representa, também, metaforicamente, a vagina da mulher e, em uma acepção mais ampla, toda a sua sexualidade. Parece-me clara a intenção libertária da poetisa, pois ao associar a libido da fêmea a um pássaro que deseja alçar vôo às amplidões celestes, está-se representando a disposição de toda moça de se libertar dos grilhões da dominação machista – a metáfora da gaiola, implícita no quadro evocado.
            A pergunta feita pelo eu lírico “quem vai querer a minha periquita?” também é rica de possíveis interpretações. Eu ousaria, inclusive, apontar a presença de uma espécie de filosofia existencial bastante primitiva assomando na verve poética do populacho. Não se sabe quem quererá a periquita. De fato, não se pode responder sequer se alguém a receberá de braços abertos! Tal angústia existencial, resultante da incerteza sobre o futuro e bem-estar da periquita - e também da liberdade que a mulher tem de dar a quem bem entender – quando associada ao jogo de palavras de conotação sexual cria um efeito geral de profunda emotividade e fôlego.   

Uma águia passou pelo meu quintal
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que ta querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)

            Esta estrofe representa, na minha opinião, o trecho de interpretação mais complexa e difícil. A águia, como todos sabem, é um animal de carregado simbolismo, tendo sido usado na literatura poética nos mais variados contextos. Uma das dualidades que imediatamente vêm à mente é a distinção das forças apolíneas/dionisíacas. A águia, ave solar, representa o falo, a masculinidade sobrevoando o quintal da poetisa. É um espírito totêmico, poderoso, heráldico. Seria o yang dos orientais. A periquita, por seu lado, é lunar, um pássaro tenro e feminil, o yin. Há um contraste de desejos, até porque não é possível, partindo apenas dos elementos que o próprio texto fornece, saber se as verdadeiras intenções da águia são nobres. Há uma tensão entre a energia sexual e a agressividade masculina – e não é à toa que se escolheu uma ave predadora como signo. Não fosse assim, a poetisa apenas confiaria sua periquita aos cuidados da águia, caso confiasse plenamente nela.
            Seria ingenuidade simplesmente excluir possíveis interpretações políticas. O gênio latino-americano, acostumado à repressão de regimes autoritários e à tirania dos mercados, encontra os veículos mais inusitados para expressar suas inquietações políticas. Estamos fortemente inclinados a acreditar, portanto, que a águia pode ser uma alusão aos Estados Unidos – cujo símbolo nacional é exatamente uma ave desta espécie. A potência paira sobre os pássaros de menor porte – países periféricos, um dos quais é a periquita, representante de nossa pátria, indefesa e profundamente musical. Em seu vôo cobiçoso, a águia lança sua sombra de terror sobre os fracos, e ameaça devorar tudo em sua insaciável sede de poder, anunciando perfidamente a intenção de namorar (clara referência à ALCA).
            O verso “Que há muito tempo estou doida pra dar” é uma alusão lisonjeira à generosidade da mulher brasileira. Ao contrário de outras, nossas musas não guardam egoisticamente seu passarinho, deixando-o definhar na podridão do recato moral e do pudor. Ela está viva, ama, sente, vibra! A periquita da mulher brasileira não é de um só, ela é de todos e todas!

Já passou uma semana e essa águia sumiu
Eu não ouvi o grito dela por aqui
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)

            A estrofe seguinte é a que coroa o poema de efeito dramático. Aqui as referências são mais diretas, pois se pinta o quadro da história pessoal da periquita. Toca-nos profundamente o sofrimento da pobre ave, amordaçada e acorrentada aos cadeados da opressão, da indiferença, da apatia. Note-se que a pobre ave, em razão das vicissitudes do destino, há muito sequer uma mísera voadinha pode dar. Certamente, caso possuísse mais tempo e recursos, a poetisa poderia desenvolver o que apenas esboçou nesta quadra, ampliando em termos épicos as aventuras da periquita e da águia, no eterno conflito e busca pela harmonia.
            O texto da música é tão rico que poderíamos nos estender indefinidamente encontrando novas leituras. Não temos espaço para tanto, portanto ressaltemos apenas uma última interpretação, que atesta o quanto o povo pernambucano está antenado aos principais debates da atualidade.
            A referência às aves – periquitas e águias - esconde uma preocupação ecológica da autora. Todos sabem que a águia é uma ave típica de climas temperados e regiões montanhosas – ou seja, de ecossistemas totalmente diversos dos em que se encontram as periquitas brasileiras. O surgimento de uma águia faminta nas plagas tupiniquins é um claro indício de desequilíbrio ecológico. Incapaz de encontrar alimentos em seu hábitat – destruído pelo desflorestamento e industrialização – a águia migra em busca de novos recursos. Sua chegada aos trópicos agride o equilíbrio biológico local, o que é plenamente representado pela nova e inquietante situação da periquita. A chegada da águia pode, também, ser vista como um dos primeiros sinais do aquecimento global.  
            A música também pode ser vista como uma denúncia contra o grave problema do turismo sexual. A águia é o gringo, que chega em busca da periquita, ou seja, das mulheres nativas e desamparadas que para assegurar sua sobrevivência necessitam prostituir-se.
            Como se percebe, o Melo da Periquita contém muito mais riqueza que muita porcaria pretensamente artística que se lança em nosso mercado fonográfico. Ao contrário de maior parte dos novos expoentes da MPB – saturados ao limite da afetação poética carioca, do apelo fácil ao samba e da repetição indiscriminada de soluções simplórias – o Melô da Periquita assoma como representante do verdadeiro lirismo popular, cunhado no comedimento da poesia nordestina.


segunda-feira, 22 de julho de 2013

Desenho Inteligente e Saltos Macroevolutivos





Ilustração do biólogo Ernst Haeckel.

 Eduardo Siebra, 09/01/2013
            Hoje pela manhã li uma palestra do astrônomo cristão Owen Gingerich e, ao me deparar com alguns argumentos sobre a teoria do Design Inteligente – de que o autor discorda – não consegui evitar a desconcertante sensação de que havia me deparado com um raciocínio pertinente, mas incompleto. No momento, porém, não consegui definir exatamente o que estava faltando. .
            Escrevo este texto, portanto, como desabafo, e também como maneira de dar forma às objeções que intuitivamente levantei durante minha leitura. Aos que o acharem exageradamente pretensioso, alego em minha defesa que o escrevi para mim mesmo.
            Mais que uma teoria científica, o Design Inteligente é um movimento intelectual ou político que se propõe a desafiar algumas das suposições materialistas do darwinismo.  De modo geral, eles acreditam que certas características do universo – especialmente características encontradas nos organismos vivos – não podem ser explicadas pelo jogo aleatório das probabilidades evolutivas. Nesse sentido, seu pensamento vai além do dos criacionistas cristãos tradicionais, já que ao invés de fundamentarem suas alegações numa interpretação literal das escrituras, eles usam evidências fornecidas pela própria ciência para justificar afirmações teológicas.
            Um exemplo interessante é o dos chamados saltos macroevolutivos. Vou tentar explicar a idéia nos termos mais simples que conseguir. Como se sabe, o darwinismo contemporâneo associa as descobertas da genética com a idéia de seleção natural para apresentar uma explicação sobre como os organismos complexos evoluíram. A idéia é simples e tem lá sua elegância: pequenas mutações ocorrem nos cromossomos dos seres vivos quando se formam os gametas. Boa parte dessas mutações são evolutivamente prejudiciais, já que elas provocam o aparecimento de problemas geneticamente transmissíveis – como algumas deformidades físicas – que diminuem a probabilidade do indivíduo de sobreviver e transmitir seus genes. Outras mutações podem ser consideradas positivas, pois elas representam melhoras qualitativas no patrimônio genético da espécie – como o aumento da capacidade cognitiva, o desenvolvimento de um órgão que aumente as chances de alimentação, etc. O indivíduo mutante portador desses incrementos está mais apto a sobreviver num ambiente em que tem de competir por recursos escassos, e isso aumenta sua probabilidade de reprodução.
            Um ponto muito enfatizado pelos darwinistas é o de que tanto as mutações como a seleção natural são aleatórias, ou seja, elas acontecem segundo as leis cegas da probabilidade. É como se os genes, por exemplo, fossem peças de um quebra-cabeça que se rearranjassem seguindo um padrão imprevisível. As peças, naturalmente, possuem encaixes específicos que só podem se juntar a contrapartes determinadas, porém o que define qual será a configuração final das peças depois da mutação é um processo caótico. Do mesmo modo, as espécies sobrevivem ou perecem segundo as leis da competição por recursos.
            Em minha opinião, a limitação do darwinismo reside não na idéia de seleção natural – conceito que possui amplo embasamento nas evidências – mas sim na explicação genética sobre as mutações. É aí que os adeptos do Design Inteligente concentram suas críticas, e eu arriscaria dizer que eles não estão de todo equivocados.
            O problema consiste no fato de as mutações aleatórias de que falamos – o rearranjar-se cego dos cromossomos – ser capaz de explicar apenas melhorias evolutivas marginais, ou seja, pequenos aperfeiçoamentos na carga genética do descendente (como no exemplo clássico do pescoço da girafa, que a cada nova geração fica mais comprido, permitindo o acesso à folhagem das árvores mais altas). Algumas inovações genéticas, porém, representam verdadeiros saltos qualitativos – e seria preciso forçar muito o princípio que estamos analisando para concluir que ele seria capaz de explicar satisfatoriamente tais fenômenos.
            Um exemplo simples de um desses saltos é o surgimento de um novo órgão de locomoção num microorganismo. O aparecimento de um flagelo que se movimenta de forma circular, por exemplo, apresenta um problema conceitual à teoria evolutiva. Suponhamos que as mutações aleatórias nos cromossomos fossem capazes de explicar o aparecimento de um filamento alongado no corpo de uma bactéria. Apenas isso seria insuficiente para assegurar uma vantagem evolutiva. Para tanto, seria possível que a mutação provocasse, ao mesmo tempo, o aparecimento do flagelo e a capacidade de movimentá-lo de forma circular[1].
            Uma série de incrementos marginais em diferentes gerações talvez pudesse explicar tais saltos – e o repetir-se do processo ao longo dos milênios seria capaz de explicar inovações tão fascinantes como o aparecimento de novos sentidos. Porém, o mistério reside no fato de que a vantagem comparativa do incremento só ficaria claro ao fim de todo esse processo evolutivo, depois de várias gerações de seleção natural. As gerações que fizessem parte do início da mudança – as que tivessem, por exemplo, um flagelo longo, porém que não fosse capaz de movimentos circulares – não teriam qualquer vantagem evolutiva em relação aos indivíduos que não possuíssem essa longa haste. Nada garante que eles teriam mais oportunidade de perpetuar seus genes.
             Que está errado com o relato evolucionista, então? Será que os adeptos o Design Inteligente possuem razão ao dizer que apenas a intervenção divina na história seria capaz de explicar certos aspectos da evolução das espécies? Ou será que o materialismo darwinista é suficiente para explicar o aparecimento de objetos tão complexos como o cérebro humano?
            Nem uma coisa nem outra, eu diria. O Design Inteligente comete uma simplificação falaciosa, que poderia ser expressa nos seguintes termos: “se a teoria da evolução não é capaz de explicar esse fenômeno, então somente a vontade Deus pode explicá-lo”. Essa é uma subversão da racionalidade científica, que se assenta muito mais sobre as dúvidas do que sobre as certezas. Os darwinistas, por seu lado, apegam-se a sua teoria com o furor de fanáticos, aproveitando-se, inclusive, da credibilidade de alguns de seus adeptos mais influentes para defender extrapolações disparatadas sobre o ateísmo – que não tem absolutamente nada a ver com o pensamento científico.
            Se eu fosse arriscar uma explicação para o impasse, diria que ele se deve ao fato de o debate estar assentado sobre pressupostos intelectuais esgotados. Explico-me.
             São as fascinantes possibilidades de combinações oferecidas pela química do carbono que tornam possível o aparecimento de moléculas tão complexas como as proteínas. O desenvolvimento dos organismos vivos aconteceu após longos períodos de interações entre moléculas orgânicas. A     questão é: será que apenas movimentos aleatórios entre peças que são capazes de se conectar são suficientes para explicar o surgimento da complexidade (tanto no caso do aparecimento da vida como no caso da evolução de organismos superiores)? O astrônomo e matemático inglês Fred Hoyle calculou que a probabilidade de uma proteína surgir, em um só passo, de uma “máquina aleatória de aminoácidos” seria infinitesimal (20−153 no caso da mioglobina).
            Não obstante, as proteínas existem! Seria um inacreditável acaso – tornado possível pela escala do tempo geológico? Ou será que existe algum componente da realidade que não estamos levando em consideração?  
            O matemático Nobert Wiener, pai da Teoria da Informação, observou que a realidade é composta não apenas por matéria e energia, mas também por informação. Ele observou que nenhum relato materialista do universo estaria completo sem levar em conta esse conceito.
            Ora, quais as implicações dessa afirmação para nossa maneira de interpretar o mundo? O que significa perceber que a própria matéria possui, em sua conformação ontológica, a possibilidade de sustentar a informação, ou seja, a aptidão a tornar-se complexa?
            Para escapar do dilema de ter que escolher entre a suposição de que Deus interfere todo o tempo na história natural (o que seria uma afirmação não-científica) e a presunção de que o que explica os problemas com que a biologia se depara é uma inacreditável coincidência (o que é metodologicamente desonesto), talvez devamos incorporar à nossa narrativa científica um novo vocabulário conceitual que leve em conta o problema de informação, que é, também, o problema da complexidade.
            Não serei eu que irei desenvolver esse novo vocabulário. Seriam necessários não apenas novos conceitos, mas mesmo uma nova matemática que fosse capaz de decifrar essa aptidão da matéria.  Ainda assim, atrevo-me a fazer a afirmação de que vivemos num universo informacional, ou seja, num universo capaz de complexidade. Embora a segunda lei da termodinâmica tenha mostrado que, quando tomado em sua totalidade, o cosmos tende a um amento irreversível do nível de desordem, dispêndios localizados de energia são capazes de criar aumentos de complexidade. Não se trata de um acaso: o aumento da informação, tanto no nível inorgânico como no nível biológico, é uma das tendências observáveis da matéria.
            Se o que eu disse é verdadeiro, não se trata só de uma questão de comprovação empírica, mas sim de uma mudança de postura intelectual face aos fatos (reluto em usar o termo “paradigma” por ter sido ele tão desgastado pelos cientistas sociais). Seria preciso mudar as teorias de modo a incorporar o elemento “informação” em seus modelos explicativos. A partir do instante em que passarmos a entender um aumento na complexidade como um aumento de informação de um sistema (aceitando a definição matemática de que o nível de informação de um sistema é o seu nível de ordem), então uma série de novas perguntas de pesquisa se tornarão possíveis. Ao invés de tentar apenas descobrir quais caminhos a matéria orgânica seguiu em sua evolução, será preciso compreender qualitativamente o que o registro informacional de um ser vivo gravado na matéria de que ele é composto tem a nos dizer (seu “design”, sua “programação”).
            O problema dos saltos macroevolutivos – que foi o que me motivou a escrever esse texto – precisaria ser reavaliado dentro desse novo entendimento da complexidade. Não precisaríamos apelar para a transcendência ao nos deparar com um problema que aparentemente desafia os pressupostos do evolucionismo, mas sim tentar entender qual dinâmica da matéria torna possível esses saltos – a emergência de estruturas altamente sofisticadas, com funções orgânicas bem definidas. Além disso, as evidências que justificam a suspeita de que alguma medida de antecipação está implícita nos saltos evolutivos talvez nos levasse a reconsiderar o papel da causa final aristotélica na biologia[2]. O que não é admissível é tentar abordar um problema complexo a partir de uma perspectiva mecanicista tacanha, que imagina a interação das moléculas e das células como o entrechocar-se de bolas de bilhar ou de pecinhas do jogo “Lego”.
Quero enfatizar que a suposição que levantei no parágrafo anterior é estritamente científica. Constatar que vivemos num universo informacional não nos permite fazer nenhuma inferência a respeito da existência ou não de Deus. O erro dos defensores do Design Inteligente reside na confusão de problemas físicos com problemas metafísicos: ao se deparar com as limitações de uma teoria, eles apelam para a transcendência, a mão invisível do Criador que a todo instante interfere no mundo em que vivemos. Como se um Deus onipotente e onisciente não pudesse ter, desde o princípio, inscrito em sua obra leis ou regularidades que se bastariam para fazer um mundo tão fascinante como o nosso funcionar sem a Sua intervenção!
Além disso, o fato de um universo como o nosso existir – um que possui constantes cosmológicas tão estreitamente compatíveis com a vida, um que permite a química do carbono, e o aparecimento da consciência, da arte e do amor – não é nem prova nem negação da existência de um Deus como Aquele em que acreditam os cristãos. Explicações metafísicas alternativas – como a idéia expressa pelo princípio antrópico de que existem inúmeros multiversos, maior parte dos quais é incompatível com a vida; ou a noção budista de que a realidade é um sonho, uma instabilidade no vazio – são tão verossímeis quanto a versão aceita pelas religiões judaico-cristãs, já que nenhuma dessas suposições é passível de comprovação empírica. Voltamos ao ponto de partida de nossos ancestrais, e sentimo-nos obrigados a reconhecer que, possivelmente, os únicos caminhos para o conhecimento das verdades teológicas são a fé, a revelação e a contemplação.  
O pecado dos darwinistas e dos geneticistas é o de confundir verdades provisórias alcançadas por suas teorias com um conhecimento definitivo a respeito da realidade. Na verdade, o pensamento científico moderno tem um estatuto epistêmico precário por definição. Toda generalização é provisória, já que qualquer nova evidência pode lançar por terra antigas convicções, e justo por isso a dúvida metódica é muito mais importante (ao menos no nível intelectual) do que a solidez das conclusões.
Nossa espécie é intrigante e intrigada: um pequeno reduto de consciência num universo gigantesco e fascinante, que se nos apresenta como enigma. O pensamento científico é um dos mais valiosos instrumentos que possuímos em nossa busca pelo conhecimento. É por isso que não devemos nem abandoná-lo quando ele se choca com nossas crenças religiosas (como fazem os advogados do Design Inteligente) nem permitir que a ciência se transforme numa ideologia. As duas possibilidades nos diminuem enquanto seres pensantes.  


[1] O exemplo é de Owen Gingerich.
[2] Por exemplo, seria possível afirmar, cientificamente, que o flagelo do microorganismo do exemplo que citei evoluiu para que aquele organismo pudesse se locomover melhor?

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Mínimas

I

Gosto da noite porque a quantidade de idiotas acordados é menor. 

II

Premissa menor: O BOPE pega um.
Premissa maior: pega geral
Logo: também vai pegar você.

III


Ser um übermensch não é ter um über-ego.

IV


A vida é como o trânsito de Recife: há vários caminhos, mas apenas um leva aonde você quer chegar.

V
  
O universo é como um Sonho de Valsa: tem recheio por dentro, e chocolate por fora.