quarta-feira, 3 de setembro de 2014

As Eleições e a Filosofia








"É Preciso Mudar, para que Tudo Continue o Mesmo"
Ou
As Eleições e a Filosofia


Visconde de Lapombão, 03/09/2014

 
As eleições presidenciais brasileiras de 2014 apresentam um desafio ao eleitor. Nem tanto pelo problema de escolher em quem votar – algo que pode ser facilmente decidido com a ajuda de um bom manual de medicina legal – mas sim pela dificuldade em compreender o que os slogans de cada candidato estão querendo nos dizer.
            A presidente Dilma, por exemplo, parece tentar nos convencer de que "para que as coisas continuem mudando, é preciso que tudo permaneça igual". Marina Silva, por seu segundo turno, nos assevera: "É necessário mudar, para que tudo continue o mesmo". Já Aécio Neves, o candidato liberal, não hesita em garantir: "Nós manteremos o bolsa família".
            Como assim? Será que os candidatos nos tomam por imbecis?
       Claro que não. Essa desconfiança maldosa nasce do desconhecimento quanto aos debates intelectuais subjacentes à atual disputa. Apenas com os instrumentos analíticos da filosofia o eleitor pode se situar nesse sofisticado embate de ideias.
            A questão, por exemplo, sobre permanência ou mudança é um problema filosófico clássico, abordado já pelos pré-socráticos. Quando a presidente Dilma nos diz que "para que as coisas continuem mudando, é preciso que tudo permaneça igual", ela claramente está expressando uma postura filosófica inspirada no pensamento de Heráclito, para quem nada é constante – tudo se transforma a todo momento. A lei essencial do universo é a lei da mudança, e apenas nossa capacidade imperfeita de conhecimento pode nos levar à ilusão de que as coisas permaneçam imutáveis.
            Segundo Heráclito, uma presidente nunca entra duas vezes no mesmo rio. Isso não apenas porque a água está em constante fluxo, mas também porque a própria presidente está se transformando a todo instante. Digamos que ela realmente decida banhar-se no ribeirão, enquanto os eleitores vão às urnas decidir o futuro do Brasil. Como poderíamos saber como ela seria após refrescar-se? Manteria ela as mesmas alianças políticas, as mesmas práticas de gestão, as mesmas estratégias econômicas do mandato anterior? Como vamos adivinhar! É um erro, do ponto de vista heraclitiano, achar que os quatro anos passados são um indício do que vem por aí. A própria trajetória do PT é a prova cabal disso (ou já esquecemos que o partido se reinventou, arrumando tantos novos bons amigos?).
            A proposição da candidata Marina Silva – "É necessário mudar, para que tudo continue o mesmo" – parece expressar o mesmo conteúdo da afirmação da rival. Do ponto de vista filosófico, porém, a candidata representa o extremo oposto, ou seja, é adepta da corrente intelectual de Parmênides. Segundo esse pensador, o que existe é necessário e imutável. As mudanças que nos indicam os sentidos são, na verdade, aparências de uma realidade que é estática, eterna – não é criada e não pode ter um fim. Sendo assim, quando Marina propõe sua "Nova Política", que, mesmo nova, mantém muito do que vem sendo feito, ela humildemente reconhece a impossibilidade metafísica da transformação.
            O que Marina talvez não tenha ainda se dado conta é que o fundamento intelectual de sua campanha pode lhe ser desfavorável – ao menos segundo o paradoxo expresso pelo discípulo de Parmênides, Zenão de Eleia. Numa corrida entre Marina e Dilma em direção ao Palácio do Planalto, mesmo que o aumento da popularidade de Marina seja mais rápido que o da atual presidente, ela jamais poderá alcançar sua rival. Isso porque, quando Marina tiver alcançado um determinado ponto A no caminho, Dilma já terá se locomovido, mesmo que lentamente, para um ponto B. Quando Marina, então, tiver chegado ao ponto B, Dilma terá se locomovido ao ponto C, e isso sucessivamente, ad infinitum.
            Enquanto Marina e Dilma correm pela Esplanada, debrucemo-nos sobre o pensamento daquele que possivelmente representa o mais indecifrável dos candidatos, Aécio Neves. Herdeiro histórico da linha neoliberal, Aécio vê-se diante do formidável desafio de mostrar ao povo brasileiro que ele não é aquilo que ele é.
            A ferramenta intelectual usada pelo candidato mineiro para superar esse desafio é o princípio aristotélico da presidentidade: o que é, é, o que não é, não é, e vice-versa. Segundo ele, as divergências em termos de política econômica não precisam amedrontar o eleitor pobre – o que se beneficia com o bolsa-família – umas vez que todos os candidatos, no fundo, são a única e mesma pessoa, quero dizer, o Lula.
            Que Aécio também seja o Lula é algo que se entende quando se considera a distinção kantiana entre fenômeno ou coisa-em-si. O fenômeno da política PSDBista – o enxugamento do Estado, as privatizações, a diminuição dos gastos públicos – são apenas a manifestação sensível no mundo de um númeno ou coisa-em-si incognoscível. A manifestação externa dessa política, portanto, não nos diz nada sobre sua verdadeira essência, ou seja, sobre a natureza dessa política quando considerada sem a participação do sujeito conhecedor – o eleitor. Este, por sinal, se dá bem até quando se dá mal, pelo menos segundo os princípios dessa filosofia derivada de Leibniz. Viveremos no melhor dos mundos possíveis, desde que as empresas tenham plena liberdade em sua destrambelhada busca pelo supremo bem. (Aécio, porém, precisa precaver-se contra seu próprio aristotelismo, uma vez que o princípio da presidentidade desemboca necessariamente no do terceiro excluído.)
Algumas conclusões se podem depreender do que foi discutido até o momento:
1) Está tudo igual.
2) Está tudo diferente.
3) É preciso mudar.
4) É preciso não mudar.
As quatro afirmações na verdade convergem, já que a política brasileira contemporânea coaduna-se bem ao principio do coincidentia oppositorum (coincidência dos opostos) do místico renascentista Nicolau de Cusa. Na mais alta instância – ou seja, em Brasília – as contradições se anulam. E isso não porque quando nós consideramos o Ser à luz do Todo, a divisibilidade perde o sentido, mas sim em razão do princípio neoplatônico subjacente à política brasileira de hoje: o da governabilidade. Os opostos precisam se anular porque é preciso passar os projetos de lei do Governo.
A governabilidade se confunde com a ideia de uno elaborada por Plotino e similarmente ela se se manifesta por meio de uma trindade. Num dos seus polos reside a figura mítica de FHC, ou Plano Real – um conceito abstrato, quase um pressuposto lógico do ser, expresso por um mínimo de estabilidade econômica e de garantias ao setor privado. No segundo polo está Lula, ou Bolsa Família – o demiurgo criador que encarna, por meio da figura cosmogônica de um benevolente e barbudo pai, a responsabilidade social do Estado. No terceiro polo está o PMDB, ou o que na teologia cristã seria identificada como o Espírito Santo – o que tudo perpassa, mas que, na prática, não parece fazer muita diferença. Talvez seja correto dizer que, num certo sentido, nossas três alternativas políticas – Dilma, Marina e Aécio – são hipóstases do uno da governabilidade, no sentido de que os três expressam a radicalidade do mais ou menos.
            Não nos iludamos, porém, com a postura cínica de que tanto faz como tanto fez. É claro que o resultado dessas eleições fará muita diferença para nosso país – e eu mesmo já escolhi em quem irei votar (ou, melhor dizendo, já escolhi em quem não irei votar). A questão é que estamos diante de um duelo de personalidades, e não de concepções. Desde um ponto de vista intelectual, acho notório perceber que nosso debate político parece ter alcançado o ápice do percurso do Espírito em direção à verdadeira Ciência e ao Absoluto, como descrito por Hegel na Fenomenologia do Espírito. Pois que mais poderia explicar tamanho marasmo, e tamanha incapacidade de brotarem ideias politicas verdadeiramente novas? Chegamos ao ápice da filosofia política, no sentido de que ela, aqui, se esgotou.
            Nessa campanha, as ideias importam quase tão pouco quanto os fatos. Por isso tanta gritaria.