Eduardo Siebra, 08/04/14
Schopenhauer não é apenas um dos
maiores filósofos do Ocidente: ele também é um de seus maiores místicos. Sua
doutrina do mundo como representação deve muito à filosofia
kantiana, ou seja, é uma elaboração racional. Porém sua descoberta da
Vontade – descoberta que condicionaria todo pensamento vitalista posterior a
ele, desde Nietzsche até Freud – é uma intuição genial, porém não-filosófica,
por ser irracional e indemonstrável (ou seja, por ser mística). O método pelo
qual ele chegou ao conceito é engenhoso (e sobre o assunto, já escrevi esse texto), mas ele se
assenta numa percepção imediata – visceral – da essência mesma da vida: a
coisa-em-si kantiana, o que nos oculta o véu de Maia.
Acontece que Schopenhauer é um místico
incompleto – e talvez isso se explique pelo fato de ele mesmo não se considerar como tal, mas apenas como filósofo. Ele abriu diante de si
uma trilha rumo ao conhecimento da verdade sobre o mundo e a vida humana, porém, por confiar demais em sua racionalidade, ele interrompeu-se diante
do que supunha ser - com razão - o limite do conhecimento humano. Justo ele, que
descobriu a Vontade num salto de irracionalismo, foi incapaz de seguir adiante
a partir do instante em que continuar a busca equivaleria a abandonar
qualquer pretensão racional.
Com uma clareza de pensamento
raras vezes encontrada, Schopenhauer disserta sobre algumas das mais intrigantes
questões que afligem o homem, sem jamais descuidar da precisão de seu
método filosófico. Munido do conceito de representação – de matriz kantiana – e
da noção de Vontade, e familiar aos textos budistas e védicos, ele nos garante
que a noção individualidade é um erro de perspectiva de nossa mente, que a vida
humana é essencialmente querer e, portanto, sofrer, e que a libertação definitiva
só pode ser alcançada pelo conhecimento e pela consciência de nossa infinita
propensão ao desejar. Além disso, ao entender que as diferentes coisas e os
diferentes seres são variegadas manifestações de uma única e mesma realidade (ou seja,
são a Vontade tornada objeto pelo principium
individuationis), Schopenhauer abre o caminho para o amor universal e a
beatitude. Mesmo aquele que nos agride, mesmo o torturador e o criminoso tornam-se
dignos de nosso amor e perdão, já que eles são também expressão da essência
íntima que, em última análise, somos nós mesmos.
É surpreendente, portanto, o tom
de resignado desespero com que a monumental obra de Schopenhauer se encerra. O
filósofo é inteligente demais para se deixar iludir pela ideia de um nada
absoluto (conceito que os escolásticos já sabiam ser impossível), porém, mesmo depois de ter feito essa
ressalva e reconhecido tal impossibilidade, ele conclui o Mundo como Vontade e
Representação asseverando que, suprimida a Vontade, desaparece o mundo enquanto
fenômeno, por desaparecer o sujeito. E com o querer, cessa também o viver, ou
seja, o sofrer, na derradeira anulação de si e do outrem. É emblemático que a
monumental obra termine justo com essa palavra: Nada!
Que terrível paraíso! Que
estranha libertação! Será que a isso nos leva a verdade: a uma anulação
relativa do mundo, a um Nada que, embora não possa suprimir de vez o Ser – que maculou
eternamente o real ao existir – apaga o sujeito na
indiferenciação? Ser livre, então, é espécie de morte mais definitiva?
Intelectualmente, esse relato da
iluminação talvez seja acertado. Ele inclusive tem muitos pontos de contato com
a formulação budista: o Nirvana não é um lugar físico – como geralmente se imagina o Paraíso
cristão – mas uma dissolução da mente no infinitamente abrangente, que não temos
como descrever com conceitos. O Vazio é uma engenhosa formulação intelectual –
uma espécie de projeção ao mundo como um todo de nossas noções de positivo e
negativo, de "é" e de "não é", que desenvolvemos a partir
de nossa experiência das diferentes coisas que compõem o universo. Trata-se,
portanto, de um fruto da inteligência levada à situação-limite - um termo que, embora vago, é possivelmente o melhor que temos para nos referirmos a um
aspecto da realidade para o qual nos faltam as palavras.
O que há de errado, então, com a
conclusão de Schopenhauer? Talvez nada. Talvez ele tenha acertado, num certo
sentido – e miseráveis somos nós, os que respiramos! Mas, quando penso nos santos e nos místicos consumados – os que alegam, ao contrário de Schopenhauer,
efetivamente terem tido a experiência do sagrado – não consigo deixar de pensar
que a conclusão do filósofo é incompleta. Ele chegou muito próximo da
verdade, mas não teve coragem ou não encontrou meios de ir mais além.
Os místicos de todos os tempos e
lugares (com a notável exceção dos budistas) costumam descrever a experiência
do inefável como um delicioso gozo, verdadeira (re)descoberta de nossa natureza interior. A imagem de um paraíso cheio de delícias talvez seja uma
metáfora ou símbolo para essa derradeira experiência: o indivíduo dissolve-se
no sentimento "oceânico", mas essa dissolução não é morte, mas sim
renascimento na única e real Vida. É impreciso, pelo menos segundo essas
experiências, descrever a superação do ego como uma aniquilação: na verdade é uma tomada
de consciência, como se o sábio pudesse subitamente se dar conta da
limitação de sua antiga perspectiva, à luz da realidade mais abrangente que
ele, agora, é capaz de experimentar.
Ao atingir essa religação com o
divino, o homem torna-se santo: ele vê o mundo e seus sofrimentos com novos
olhos – não mais com a ansiedade dos que desejam fazer o bem –
como é o caso do homem pio – mas sim com a
plácida beatitude de quem, mesmo aceitando a inevitabilidade do sofrimento,
está disposto, por amor, a fazer o bem a seus semelhantes. É uma mudança de
perspectiva que faz toda a diferença: não se deseja mais nada, pois se alcançou
o derradeiro bem. E nessa suprema abundância alcança-se a infinita
generosidade.
O próprio Schopenhauer disserta, em belíssimas páginas, sobre a beatitude – estado que, segundo ele, se alcança pela
tomada de consciência e consequente superação da Vontade. Ele mesmo, porém,
parece ter sido incapaz de alcançar o amor universal que tanto admirava. Em que
pese a tendenciosidade dos biógrafos, tornou-se anedótico o episódio em que ele
empurrou Caroline Marquet de uma escadaria – supostamente porque ela estava
fazendo barulhos de propósito para aborrecê-lo enquanto ele estudava. Os demais
episódios de sua vida adulta e velhice parecem revelar um personagem que sofreu
não com a resignação indiferente dos santos, mas com o mau-humor dos gênios.
Tanto a conclusão do Mundo como
Vontade e Representação como a biografia de Schopenhauer parecem revelar um
homem que esteve próximo de alcançar o paraíso, mas que jamais pôde ultrapassar
o derradeiro limiar. E tal incapacidade é notória, pois ela se manifestou num
homem que tinha uma das mais fascinantes inteligências que o mundo já
testemunhou.
Por que Schopenhauer não se
tornou um santo? Para responder eu cito Nicolau de Cusa – autor do fascinante
tratato de misticismo renascentista, A Visão de Deus. Segundo ele, a
equalização dos opostos no Todo – a realidade revelada quando se suspende o
véu de Maia, que equivale ao esvaziamento ontológico a que a filosofia de
Schopenhauer chegou – ainda não é o Paraíso. O coincidentia oppositorum – ou coincidência dos opostos, na
terminologia mais precisa – não se confunde com Deus, mas é a barreira que se
interpõe entre todo conhecimento e Deus: é aquilo que Nicolau de Cusa chama de
"muro do Paraíso".
Ou seja, podemos usar nosso
intelecto para tentar alcançar a visão do divino, porém se dependermos apenas
dele, jamais poderemos chegar ao final de nossa jornada, pois ao fim do caminho
encontraremos uma muralha intransponível. Podemos usar nossa mente apenas para
intuir o mistério e nos referirmos a ele de forma indireta, mas jamais
poderíamos dominá-lo ou decifrá-lo usando uma mente que está condicionada não
só pelo tempo e espaço, mas pelo princípio da individuação e pela causalidade
(ou princípio da razão, na terminologia de Schopenhauer). Nem mesmo a meditação
seria capaz de nos fazer ultrapassar essa barreira – e talvez o Nirvana budista
não seja mais do que a plácida contemplação deste fascinante muro – em que o
mundo inteiro se anula, o bem torna-se o mal, o cima é o embaixo e o dentro
está fora.
O homem não pode, apenas com
suas forças, ultrapassar este obstáculo: a salvação é um milagre, ou seja, uma
intervenção divina. Nenhuma meditação bastará para conhecermos a natureza de Deus:
toda tentativa racional de descrevê-lO ou é filosofia de má qualidade, ou é um triste
equívoco – a confusão do Criador com a barreira que ele interpôs entre Si e o
mundo.
Por isso a trilha de
Schopenhauer desemboca no Nada. Abençoado por sua inteligência, ele chegou
ainda muito jovem aos limites do cognoscível. Mas, uma vez tendo alcançado essa
proeza, ele não teve como avançar. E calou-se, confundindo o enigma com a sua
solução. Sem a inspiração da ideia de Deus nem orações para inspirar-lhe que
caminho seguir, ele armou sua tenda em frente aos portões do Paraíso e esperou
amargamente a chegada do fim de seus dias – quase como o personagem kafkiano,
que se postou diante de um portão sem saber que a abertura estava ali apenas
para que ele e somente ele pudesse entrar.
Um melancólico destino para esse
extemporâneo budista do Ocidente – que em tanto contribuiu para aliviar o
sofrimento solitário dos muitos leitores a quem ele presenteou sua obra.
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