terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Sede



O povo pirahã




Eduardo Siebra, 21/10/2014 (Brasília)

            Vou fazer uma afirmação audaciosa, mas de cuja verdade estou convencido: quase toda cultura desencadeia, nas pessoas que dela fazem parte, uma aguda pulsão religiosa. Mencionarei em breve uma intrigante exceção, porém acho que, como regra, é justo reconhecer essa inclinação como realidade. Ela é mais abrangente do que imaginamos, e se manifesta mesmo em pessoas que não se definiriam como religiosas.
            É uma inexplicável sede, algo como uma inquietação ontológica, como se não estivéssemos plenamente convencidos da realidade dos objetos, uma desconfiança do mundo, do momento presente e da transitoriedade das coisas. Será possível que o que vemos seja tudo? E antes? E depois? E além? Dotados de uma imaginação que não se contenta com o aqui e agora, imaginamos deuses e buscamos refúgio neles. Ou, o que talvez seja ainda mais perigoso, imaginamos significados ocultos para a vida, um sentido e direcionalidade para a história, e nos convencemos da necessidade de realizarmos, com suor e sangue, terríveis destinos para nós reservados.
            Muitos eruditos já alertaram sobre os riscos de perdemos de vista o caráter religioso de muitas de nossas ideologias seculares. Porém, se os potenciais desdobramentos da inclinação humana ao sagrado são bem conhecidas, resta uma névoa sobre as possíveis explicações para essa persistente tendência. Costuma-se aceita-la como um dado, e investir mais energia na investigação de seus desdobramentos.  
            Por que praticamente todos os povos possuem mitos de criação? Por que é tão disseminada a crença na imortalidade da alma, e numa vida após a morte? Por que existem as profecias sobre o fim do mundo? Os antropólogos catalogaram extensivamente a manifestação histórica desses fenômenos, porém é raro encontrar alguém que se aventure a apresentar uma explicação geral que dê conta de sua quase universalidade.
            É tentador imaginar alguma misteriosa pulsão instintiva – à moda freudiana – que nos provocasse essa ânsia de absoluto. Seria algo inato que de alguma forma estaria gravado em nossa mente – do mesmo modo que está gravado o instinto de preservação. Pessoalmente acho que essa explicação é simplista, e deixa de lado importantes evidências relacionadas ao uso da linguagem pelo homem. Afinal, se se tratasse de uma inclinação biologicamente determinada, por que ela se manifestaria apenas nos homens?
            Sabe-se que muitos animais possuem sofisticadas formas de comportamento instintivo. Encontram-se na natureza diversos rituais, com finalidades reprodutivas ou sociais (como, por exemplo, definir a posição de um macho dentro de um grupo). Já se sabe, também, que muitas espécies desenvolveram complexas e versáteis formas de comunicação (que talvez ainda estejamos, com nossa presunção hominídea, longe de decifrar). Porém, em todas as manifestações identificadas pela etiologia, não há nada que pudesse ser comparado – só para dar um exemplo – à distinção profundamente humana entre as dimensões sagradas e profanas da vida. O ritual biológico que se encontra na natureza é, num certo sentido, utilitário, já que ele serve a um propósito instintivamente reconhecido, ligado à reprodução ou preservação individual ou coletiva. O ritual humano, ao contrário, é aprendido, e muitas vezes serve a finalidades culturais que, de um ponto de vista estritamente fisiológico, não poderiam ser definidos como vantajosas ou desvantajosas. A cultura tem um elemento utilitário forte, mas ela não é escrava dessa dimensão da vida, nem sequer da biologia.
            Parece-me bastante óbvio, portanto, que a cultura está de alguma forma relacionada à presença da nossa pulsão religiosa. O que não está de modo algum claro é que elemento específico da cultura faz com que essa pulsão seja tão generalizada e tão abrangente. Que aspecto da vivência cultural, enfim, desencadeia a religião na alma humana?  É difícil responder essa pergunta justamente porque, no que diz respeito à presença ou não do fenômeno religioso, as diferentes sociedades humanas são muito parecidas – o que torna difícil estabelecermos suposições comparativas. Para fins de contraste, possuímos apenas os animais – vivendo despreocupadamente seu eterno presente – porém estes não nos servem para identificar o elemento cultural que estamos buscando porque os bichos carecem da cultura mesma, pelo menos se a definirmos com base numa linguagem figurativa, simbólica.
            Para que o mistério pudesse ser solucionado, ou seja, pare que pudéssemos identificar que elemento cultural é responsável pelo aparecimento da ansiedade metafísica do homem, precisaríamos ser capazes de comparar a cultura não com uma não-cultura, mas sim com uma cultura que se caracterizasse justamente pela inexistência dessa pulsão. Para nossa sorte, uma tal cultura parece existir, perdida no meio da imensidão verde da floresta amazônica. Ou pelo menos é o que afirma um polêmico linguista americano.
            Os pirarrãs da Amazônia se tornaram famosos depois que o missionário Daniel Everett passou vários anos com eles, estudando seu idioma. Seguno Everett, eles são um dos raros povos que não possuem mitos da criação. As características supostamente identificadas na língua pirarrã são tão incríveis que levaram outros linguistas – dentre os quais o próprio Noam Chomsky – a acusar Daniel Everett de charlatanismo. Eles supostamente não possuem números, nem palavras  abstratas para cores (possuindo apenas os conceitos de "claro" e "escuro"), nem aquilo que Chomsky chama de "recursividade" gramatical, ou a capacidade de retomar ou repetir elementos do discurso anteriormente referidos (e.g. "Essa é a menina de que eu falei."). Ao contar uma história, os pirarrãs possuem ferramentas indiretas para retomar o que já foi dito, porém eles não são capazes de fazer isso gramaticalmente.  Daniel Everett chegou ao ponto de afirmar que a falta de recursividade do idioma pirarrã era uma prova de que a suposta "gramática universal" de que fala Chomsky simplesmente não existia: a língua não é um atributo humano inato, mas sim um instrumento que surge da necessidade concreta de se comunicar.
            A característica da cultura pirarrã que mais nos interessa, porém, é sua relutância em se referir ao passado ou futuro distantes. Embora seu idioma seja capaz de evocar acontecimentos passados, o evento em questão precisa ter sido efetivamente vivido ou testemunhado por alguém para que seja de interesse – ou, para colocar de forma mais pomposa, para que tenha valor epistemológico.  Os pirarrãs, portanto, não estão interessados em nada que esteja fora do mundo imediatamente vivenciado. A fabulosa consequência disso é que eles, embora admitam a presença de alguns espíritos no mundo em que vivem (e mesmo de criaturas cosmológicas que habitam outras dimensões da vida), não tem qualquer interesse em deuses ou mitos da criação. Everett jamais conseguiu convertê-los ao cristianismo, e eles perderam completamente o interesse sobre Jesus Cristo quando souberam que o missionário nunca o tinha visto pessoalmente! A ironia é que, à medida que se aprofundava no conceito de verdade dos pirarrãs, o próprio Daniel Everett foi perdendo sua fé (essa experiência é narrada no livro Don't Sleep: There are Snakes). Hoje ele é um ateu.
            Chega a parecer óbvio que um povo que carece de mecanismos linguísticos para se referir a abstrações ou ao passado e futuro distantes não seja capaz de desenvolver uma mitologia. Mas a percepção não é casual. Se as alegações de Daniel Everett a respeito da cultura desse povo forem verdadeiras, isso pode significar que a pulsão religiosa a que me referi no começo deste texto não é, de maneira alguma, uma pulsão humana inata! Não existiria, portanto, uma inclinação natural e espontânea ao transcendente: isso seria um desdobramento do desenvolvimento da linguagem.  
            Kant, numa intuição puramente abstrata e genial, já havia demonstrado na Crítica da Razão Pura que algumas de nossas ideias religiosas são – pelo menos desde um ponto de vista filosófico – miragens conceituais, que ele chama de antinomias da razão pura. Num dos capítulos mais memoráveis da história da filosofia ocidental, Kant observa que questões como "terá o mundo um começo e um fim, ou será ele eterno?" e "o universo possui um limite no espaço?" simplesmente não fazem sentido. Simplificando de forma grosseira o argumento do filósofo, poderíamos apresentar o problema da seguinte forma: nossa percepção do mundo se dá por meio do tempo e do espaço (que Kant diz ser, na estética transcendental, aspectos da cognição humana, e não características intrínsecas do universo). Podemos, ao nos referirmos a um determinado acontecimento, imaginar o que veio antes dele, e posteriormente nos perguntarmos o que veio antes desse segundo momento, e assim sucessivamente, ad infinitum. Porém a pergunta: "Quando tudo começou?", que emerge, quase que de forma natural, desse exercício de regressão no tempo, não faz sentido, pois para saber o que há antes do tempo, precisamos nos valer da própria noção de tempo. Não há, portanto, um meio como a cognição humana possa imaginar o tempo como um todo, uma completude, e então perguntar "o que havia antes disso?", já que essa pergunta já pressupõe o próprio tempo. Do mesmo modo, perguntar onde começa e onde termina o espaço não faz o menor sentido, pois para definir os limites do espaço tomado como um todo, precisamos nos valer da própria noção de espaço. Não há um "fora" do espaço, pois dentro e fora já são noções espaciais.  
            O que Kant define como uma armadilha da razão, eu diria que é, também, uma armadilha da linguagem. O caso do povo pirarrã talvez nos ajude a compreender isso de forma mais clara. Por possuírem recursos verbais relativamente simples – pelo menos no que diz respeito à categorização dos tempos – a consciência pirarrã está muito satisfeita com o aqui e o agora. Nem que quisessem eles poderiam perder-se em especulações sobre o começo de tudo, ou sobre o fim da história. O que há é o que se vê, o que se come, o que se cheira, e pronto! Quanta sabedoria filosófica não haverá por trás desse desinteresse?
            Muitos são os linguistas que contestam as afirmações de Everett. Há mesmo os que dizem que a língua pirarrã possui, sim, recursividade. Independentemente de ele estar certo ou não, acho que suas afirmações, ainda que equivocadas, levantam um debate intelectual muito interessante. Pode parecer um despropósito afirmar que é a linguagem humana – ou a mente – que constituem o futuro e o passado.         De um ponto de vista filosófico, porém, talvez esta seja a única posição defensável. O próprio Schopenhauer – esse diligente kantiano – observou que o locus da mente é o presente – esse ponto de virada na cachoeira do tempo, em que as águas do futuro a todo instante se despejam no abismo do passado. É temeroso afirmar que só o presente é real, mas, enquanto sujeitos conhecedores, só podemos estar seguros de sua realidade.
            Essa é uma verdade que se aplica plenamente à experiência de vida dos animais. É claro, eles possuem memória, e são capazes de aprendizado, porém sua consciência – até onde vai nosso conhecimento – está plenamente absorvida no instante. Isso por um motivo muito simples: eles carecem do instrumento cognitivo que lhes permitiria vagar mentalmente pelas imensidões do antes e do depois: a linguagem.
            Pessoalmente, sou um objetivista, e acredito que futuro e passado sejam reais. Porém reconheço que minha convicção é um ato de fé: fé numa determinada ontologia que eu não posso, por argumentos estritamente filosóficos, provar.  Mas, mesmo que tomemos essas dimensões como reais, ainda assim precisamos reconhecer que a  linguagem é o veículo de que se vale a mente para libertar-se da experiência imediatamente vivida e projetar-se temporalmente (com auxílio, claro, da memória e da imaginação). Esse possivelmente foi um dos momentos mais definidores da evolução da consciência humana, o instante em que desenvolvemos uma linguagem sofisticada o bastante para se referir à temporalidade. Pois quando a gramática humana destrancou as portas do antes e do depois, nasceram, simultaneamente, o céu e o inferno.
            A inquietação metafísica do ser humano talvez nasça exatamente de nossa capacidade de divagar pelo tempo. O presente se basta: ele está aí, o sol brilhando, as cigarras ciciando, as folhas balançadas pela brisa da tarde. É uma plenitude que não demanda explicações, não desencadeia regressões causais infinitas. Quando muito ele pode evocar, por oposição, uma reconfortante ideia de Vazio, que alguns místicos dizem se confundir com o próprio Ser, e cuja compreensão talvez pudesse ser definida como a derradeira iluminação espiritual. Mas o presente carece de uma justificativa ontológica radical.
É quando a consciência olha para trás e para frente que as inquietações surgem: severos demiurgos transformando o nada primordial em ordem, demônios colossais desfazendo a mundo no instante do fim. É uma vastidão grande demais para que o homem possa suportá-la: ai de nós, criaturas tão insignificantes diante de um infinito que imaginamos ver em todas as direções! Não, tamanho Abismo é horroroso demais para que nossa consciência possa suportá-lo, é imperioso preenchê-lo de algum modo, sejam com deuses, seja com os nossos bondosos ancestrais, seja com a figura tranquilizadora de um Pai cuidadoso, que nos reservou algum desígnio secreto... Qualquer coisa, menos a terrível miragem do Nada que nossa mente descobriu quando se debruçou sobre os limites do tempo. 
Pior que tudo, ao projetar sua consciência, o homem também descobre a história: um eterno drama, um inclemente vir-a-ser que jamais nos dá folga, sempre avançando em direção a um ominoso destino, ou, o que talvez seja ainda mais sombrio, uma repetição de tragédias destituídas de sentido.  Será tudo por acaso? Será a história eterno repetir de erros e de sofrimentos? É preciso encontrar um sentido para o diabólico girar da roda do tempo, é preciso estabelecer metas, razões, pois de outro modo não poderemos suportar o tédio e o desespero dos dias que se repetem.
Se as proposições acima forem verdadeiras – ou seja, se a angústia metafísica humana não for inata, mas nascer de uma extrapolação mental da ideia de tempo (à moda das antinomias kantianas) – isso talvez signifique que estamos próximos de uma importante (re)descoberta intelectual: a de que a sede é, na verdade, o elo perdido que une o fanatismo religioso ao secular.
Tendemos, por uma conveniência acadêmica, a estudar o fenômeno religioso e o político como manifestações culturais distintas. É algo muito arraigado à tradição secular do ocidente: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César. A política trata da distribuição de poder na comunidade organizada, a religião deve tratar apenas das questões propriamente "espirituais". Essa categorização é conveniente como técnica social, mas de modo algum se justifica se refletirmos mais profundamente sobre os dois fenômenos.
Acontece que a inquietação espiritual não é uma exclusividade do homem religioso. Se um homem abandona a ideia de um Deus criador (talvez por supor, como Freud, que isso é uma reconfortante mas inverossímil projeção de uma figura paterna pelo inconsciente), nem por isso o abismo existencial que se estende em seu entorno se torna menos desesperador. O passado continua parecendo uma escuridão vertiginosa, o futuro, uma ameaçadora incerteza. A posição humana na história parece ser de completa fragilidade – uma criatura perspicaz, mas que está condenada a ter que dar o melhor de si para domar forças que parecem, a todo instante, fugir de seu controle.
A sede continua lá. Não deixamos de nos perguntar "de onde viemos?" e "quem somos?" simplesmente por não acreditarmos mais em Deus. Continuamos sentindo a velha necessidade de justificar nossa posição no mundo, de encontrar fundamentos e justificativas que, se não nos consolam, pelo menos parecem atribuir um significado ao que de outro modo pareceria uma enlouquecedora sucessão de eventos.   
Não é por acaso, portanto, que as ideologias políticas, como as religiões, costumem possuir todas narrativas fundadoras, mitos legitimadores e, em alguns casos, verdadeiras escatologias – anunciadas, vejam só, também por profetas barbudos! Supor que o papel da política seja o de abordar os problemas de agora não basta: a história precisa ter um significado, a humanidade está evoluindo, e nas brumas do futuro alguns são capazes de discernir os reflexos fantasmagóricos de um paraíso terreal. Às armas, cidadãos, pois a concretização desse sonho é o supremo objetivo que nós poderíamos desejar. Que venha o Apocalipse, e com ele, o Reino dos Justos.
A recorrência histórica do messianismo político talvez seja um indício da persistência de nossa apreensão metafísica. A França jacobina, a Itália fascista, a Alemanha nazista, a Rússia soviética, a China maoísta, a Coreia do Norte jucheísta: todos são exemplos de ideologias supostamente seculares que se inspiram numa forte noção de direcionalidade histórica – a suposição de que a humanidade está partindo de estágios menos evoluídos para outros mais avançados. E é simplesmente assombrosa a capacidade das doutrinas fundadoras desses países de ignorarem toda e qualquer evidência empírica que questione seus pressupostos essenciais, mesmo os fáticos. Não se trata, afinal, de explicar casuisticamente um ou outro acontecimento, mas sim o de dar um sentido à História tomada como um todo, o de tirar o peso da absoluta imprevisibilidade dos acontecimentos de nossas costas, e depositá-lo nos ombros de um fabuloso monstro – o Destino – que nos arrastará, mesmo que ao custo de milhões de vidas, para o futuro.
Mesmo os sistemas políticos que aparentemente não parecem padecer tão gravemente das escatologias históricas – como o liberalismo, que supostamente depende de constante cooperação de atores que estão preocupados com pouco mais do que seu próprio bem-estar – podem padecer, num nível subliminar, de uma concepção evolucionista. O humanismo secular de nosso tempo, com sua inclinação ao antropocentrismo, costuma considerar como quase inquestionável a suposição de que o homem é o ator principal do drama histórico. Isso desemboca numa visão profundamente otimista sobre nosso papel no universo: não importa quão estúpidas sejam nossas escolhas coletivas, não importa quão grande o estrago que provocamos no meio ambiente: no fim das contas tudo dará certo, pela simples razão de que não poderia ser de outro modo! Afinal, a história humana é o verdadeiro drama cosmológico, e a ciência – esse instrumento divino dado a nós por Prometeu – necessariamente encontrará uma solução para todos os nossos problemas.[1]
            Por termos nossa experiência de vida condicionada por uma linguagem que nos inclina, a todo instante, à apreensão quanto aos limites últimos da realidade, estaremos condenados a sempre cair no erro, seja sublimando nossas ansiedades pelas miragens de demiurgos antropomórficos, seja inconscientemente extravasando pela política nosso medo da contingência? Eu diria que não, e que são dois os remédios ao nosso alcance. 
Muito antes dos ocidentais, os asiáticos perceberam a capacidade libertadora do momento presente. Não é outro o ensinamento da meditação: trazer a consciência para o agora, deixar de lado os arrependimentos, as apreensões e buscar, com o auxílio da respiração – esse poderoso recurso místico – trazer a mente de volta para o instante. E é nesse ato de retorno ao agora que o discípulo tem mais chances de contemplar a verdadeira face de Deus: confrontado com o presente, aquele que medita precisa se confrontar, por um lado, com o mundo tal qual ele efetivamente se mostra (ainda que como fenômeno) e, por outro, com seu verdadeiro eu, não condicionado pelas memórias e pelas expectativas. Essa redescoberta do eu é profundamente libertadora. Pela interiorização da consciência o homem tem esperanças de escapar à armadilha teológica do regresso ao infinito – de tentar buscar no tempo um assombroso instante em que tudo se fez do nada – e experimentar a delícia da criação como o que ela é – uma eterna atualização e uma eterna intervenção benevolente. Com isso se desvanecem os abismos com a qual nossa mente gosta tanto de se deslumbrar, e tranquilizados podemos reassumir nossas vidas com mais leveza. Acho curioso que o linguista Daniel Everett tenha definido a gramática pirarrã – talvez num inconsciente mea culpa cristão ou numa projeção de expectativas suas – como sendo a gramática da felicidade. Causou-lhe intensa impressão a descoberta de como era feliz um povo que preferia viver – ao contrário de nós – no presente.    
O primeiro dos remédios contra a sede, portanto é a meditação, por sua capacidade de resgatar o presente. Não minimizemos o seu potencial. Um homem que medita seriamente não se atreveria a aderir a um movimento político salvacionista, que supõe serem justificáveis terríveis crimes em nome da concretização de um ideal. Que males nós não evitaríamos se a sociedade como um todo aprendesse a meditar – ou seja, a ver as coisas como ela realmente são, sem os filtros das nossas expectativas e sem o peso dos nossos rancores.
E a segunda solução? Bem, a segunda solução é ler Kant. Mais especificamente o capítulo sobre as antinomias da razão pura de sua mais famosa obra.
Quem o entender estará livre dos abismos.  




[1] Aqui mesmo em nosso quintal estamos padecendo de um grave quadro de dissonância cognitiva política. A crença de que o Brasil está se tornando uma sociedade mais justa, mesmo que possa ser amparada por algumas evidências empíricas, possui um claro elemento mitológico, cuja função legitimadora torna-nos cegos a qualquer evidência ou opinião que pudesse questionar o dogma central. Como resultado, tornamo-nos um povo sem qualquer senso de autocrítica e, o que talvez seja muito mais perigoso, sem qualquer interesse por boas práticas de gestão pública.

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