É Preciso Reabilitar a Bíblia?
Ou
De que Cristianismo precisa o Século XXI?
Eduardo Siebra, 02/12/2014
Com muitas apreensões a humanidade
chegou ao século XXI. Grandes debates estão sendo levantados: uma economia
verde e sustentável é possível? Viveremos num mundo mais pacífico, ou o futuro
nos reserva um recrudescimento ainda maior das guerras? Resolveremos o problema
da desigualdade e da fome? Que destino reservam os próximos dois séculos para
uma civilização que consome cada vez mais recursos naturais?
Os cientistas, por seu lado, estão
discutindo questões desconcertantes para a imagem que o homem possuiu de si
mesmo por milênios. Haverá uma "Teoria de Tudo", capaz de unificar
todos os conceitos físicos conhecidos, ou será o conhecimento científico um
empreendimento incompleto por definição? Será possível que a nossa biosfera
realmente possua, como alegam alguns ambientalistas, as características de um
meta-organismo? Terá a civilização provocado uma crise de retroalimentação
irreversível nesse sistema? Seremos algum dia capazes de decifrar o mistério da
consciência e – quem sabe – reproduzi-la em computadores criados pelo
homem? E será que conseguiremos algum
dia identificar outras formas de consciência inteligente em nosso universo – se
não no espaço, quem sabe entre as espécies que compartilham este planeta
conosco?
Num mundo com questões tão
fascinantes, qual poderia ser o papel de um livro que fala sobre prescrições
alimentares incompreensíveis, mandamentos morais divinamente estabelecidos e a
sucessão de desgraças históricas que se abateram sobre o povo judeu por ter
infringido esses mandamentos? Que relevância poderia ter a Bíblia em nosso
mundo, no século XXI?
Estou convencido de que boa parte
das pessoas educadas – ou pelo menos boa parte daquelas que possuem algum
conhecimento sólido sobre a ciência e seus métodos – diria, sem pensar duas
vezes: nenhuma! A Bíblia é herança ultrapassada, que sobreviveu ao tempo apenas
por inércia e pelo fato de uma quantidade significativa de pessoas ainda não
conseguir entender o método científico. Trata-se não apenas de um livro que
contradiz evidências levantadas pela arqueologia, mas também de uma obra que
transmite uma mensagem ética ultrapassada – segundo a qual em algumas
circunstâncias é justificável tratar o descrente com violência, e submeter
certas categorias de seres humanos a um tratamento degradante.
Suspeito, porém, que os críticos
contemporâneos da Bíblia estejam incorrendo numa forma grave de anacronismo.
Eles usam os parâmetros morais e históricos de nossa época para julgar uma obra
que foi escrita há milênios. Tal postura os impede de compreender que qualquer
ideal humanista igualitário que seja usado para criticar a Bíblia só se tornou possível
– pelo menos na banda do mundo onde vivemos – por causa do livro que eles
atacam! O que a Bíblia tem de cruel e de desumana é expressão do momento histórico
em que foi escrita – quando a consciência ética era muito diferente. Para os leitores
daquele período, o livro expressava uma mensagem de radical ruptura moral – muitas
vezes beirando a subversão[1].
Não são os ateus, porém, os
principais culpados por essa abordagem anacrônica, mas sim os próprios fiéis. O
que os ateus fazem é simplesmente apresentar evidências convincentes dentro de
um debate que, em primeiro lugar, se tornou possível por causa da incapacidade
de as pessoas de fé abraçarem uma leitura crítica do texto sagrado – uma que
não ache que levantar problemas interpretativos e históricos sobre as
escrituras possa representar uma ameaça para a verdade transmitida por sua
religião.
Suponhamos que os cristãos tenham
razão e que, como eles alegam, a Bíblia é um texto que expressa verdades
reveladas, ou seja, mensagens de Deus aos seus filhos, transmitidas por meio
dos santos e dos profetas. Apenas por um instante, imaginemos que o texto
sagrado realmente tenha nascido de um ato de intervenção divina na história. Nesse
caso, teria sido Deus quem haveria permitido o nascimento do texto tal como o
conhecemos hoje: sua vontade agiu sobre os redatores do livro sagrado,
permitindo-lhes acesso a revelações teológicas que de outro modo não poderiam
ser conhecidas pelos humanos. Seria um
gesto por meio do qual o Criador estaria tentando se comunicar com suas
criaturas.
Aqui cabe perguntar: qual será a
verdadeira essência dessa mensagem? Mesmo supondo que certos acontecimentos históricos
possuam um valor teológico, será que o Deus cristão, que, além de ser puro
amor, é pura inteligência e possui pleno conhecimento sobre tudo o que já
aconteceu e tudo o que será, estaria realmente tão preocupado em convencer seus
filhos a respeito do exato contexto factual em que esses acontecimentos se
passaram? Por que Ele faria isso, em especial nos casos em que evidências
empíricas refutam a literalidade do relato sagrado?
Se
Deus criou o mundo, o mundo, num certo sentido, também é sagrado, por ser fruto
da suprema vontade criadora. As evidências que a ciência encontra nele devem
ser respeitadas com humildade pelo fiel, pois se tratam de evidências extraídas
diretamente da obra divina. Imaginar que Deus pudesse desejar que seus filhos
ignorassem as evidências observáveis em sua criação e se ater ao relato de um
texto que – com ou sem inspiração – foi redigido por mão humana é uma atitude
teologicamente perversa, pois supõe que nosso Criador pudesse ter
características psicológicas infantis, já que ele se diverte em espalhar pelo
mundo falsidades que nos levam ao engano sobre sua mensagem. Ainda mais Ele,
que tudo sabe, e que poderia sem esforço algum revelar aos seus seguidores
todos os acontecimentos passados ou futuros, com uma precisão empírica
inalcançável por qualquer método de investigação histórica! Na verdade, essa
postura mais parece a tentativa de um mau leitor de projetar sua própria falta
de sutileza no Altíssimo, como uma forma meio desesperada de dissuadir as
pessoas de aceitar o óbvio, ou seja, o de que os relatos históricos contidos na
Bíblia são passíveis – como todos os demais relatos jamais escritos pelo homem
– de erro e de interpretações equivocadas.
Além
disso, por que Deus estaria tão preocupado em estabelecer tabus e em normatizar
comportamentos sociais que, para a consciência contemporânea, parecem fazer tão
pouco sentido? Será que o corpo do homem e a sociedade realmente são o reflexo
local da ordem cósmica concebida por Deus de forma atemporal? Será que nossos
hábitos alimentares e sexuais são, realmente, tão importantes para o Senhor dos
Mundos – que poderia fazer sumir todos os pecadores da criação apenas deixando
de pensar neles? Ou não terão os homens santos do passado simplesmente
confundido os hábitos de seu tempo e de seu lugar como sendo ditames
universais? Precisamos realmente aceitar os tabus da antiguidade para podermos
nos tornar dignos da mensagem de Deus aos seus filhos?
Um mínimo de sensibilidade
antropológica nos ajuda a pôr esses debates no seu devido contexto. Não somos o
único povo a supor que suas regras de conduta e suas interdições representam
comandos divinos. Vários povos primitivos ritualizam a vida justamente por imaginar
que há uma maneira intrinsecamente certa e outra intrinsecamente errada de
fazer o que quer que seja. Muitos – como os romanos – atribuem um caráter
verdadeiramente sagrado às leis humanamente sancionadas. Outros, como os
chineses, acham que as normas sociais são o reflexo de uma ordem cósmica mais
ampla, que abarca o mundo humano e não-humano. O problema é que os diferentes
povos possuem regras e tabus profundamente diferentes. Excetuando-se algumas
regularidades quase universais – como a interdição do incesto – as diferentes
sociedades humanas estabelecem regras muito distintas sobre como regular os aspectos
da vida. Cada um pode até ingenuamente acreditar que o seu povo efetivamente é o povo eleito, e que o seu jeitinho de
comer e de tratar as mulheres virgens é o jeitinho certo. Mas todos não poderiam
estar corretos ao mesmo tempo. Seria até concebível que Deus pudesse ter
escolhido um povo em particular para ser seu povo eleito – e realizar
plenamente a sua vontade. Mas quem garante que nós seríamos esse povo? Um Deus
com motivações tão enigmáticas a ponto de aceitar essa forma de particularismo
religioso como a expressão de sua vontade seria caprichoso o bastante para
escolher, por exemplo, um povo obscuro das ilhas do pacífico como sendo o
verdadeiro povo eleito. Num mundo em que tantas pessoas fazem a mesma alegação,
certamente a fé e uma sincera convicção sobre seu caráter especial jamais
poderiam ser aceitas como provas da eleição.
Quando escutamos tantas pessoas
dizendo "apenas eu estou certo!", ao mesmo tempo em que defendem
posições religiosas conflitantes, não é mais simples supor que todas estejam
erradas? Não seria o caso de abandonarmos essa visão exclusivista da
religiosidade, e tentar conceber formas mais sofisticadas para o conceito de
revelação divina? Será que tais questões de ordem prática representam o essencial da
experiência religiosa?
Voltemos ao problema da literalidade
do texto sagrado. Como sabe qualquer filólogo de botequim, todo texto escrito
possui uma história. Ele foi formulado num determinado tempo e lugar, e usando
uma determinada linguagem. Ao longo do tempo ele é copiado e lido por
diferentes pessoas, e, nos casos das obras mais antigas, é possível verificar
verdadeira evolução entre diferentes versões. Mais importante que isso, à
medida que as ideias e a linguagem vão mudando, o sentido do texto também vai
adquirindo novos sentidos. Por mais paleolíticos que possam ser algumas
mentalidades contemporâneas, a verdade é que o sentido que um texto sagrado
possui para um leitor ortodoxo de hoje em dia é profundamente diferente do
sentido que ele poderia possuir para um ortodoxo da antiguidade. A carga de
conceitos utilizada mesmo pelos fundamentalistas de hoje é diferente da que era usada no passado. Não existe um sentido sem a
co-participação do leitor.
Isso é válido para qualquer obra
escrita por mão humana. Quando se trata da Bíblia, porém, são poucos os que se
aventuram a afirmar essa verdade com todas as letras. Alguns acham que isso
poderia refutar elementos essenciais da fé, como o dogma da ressurreição – que
foi temerariamente alçado a pedra de toque teológica da religião cristã. Mas, ora!,
quando aplicamos essa percepção da historicidade de todos os textos à Bíblia,
torna-se incrivelmente fácil entender uma série de contradições que, se fossem
explicadas de um ponto de vista estritamente teológico, exigiriam a produção de
verdadeiros tratados! O que pareciam ser sutilezas acessíveis apenas aos santos
tornam-se, como que num passe de mágica, compreensível até a uma criança. O que
acontece é que as fontes textuais usadas muito raramente são únicas, e relatos
testemunhais diferentes podem dar origem a diferentes versões. Ao invés de uma
misteriosa intenção divina por trás de obscuros trechos que se contradizem, não
seria muito mais fácil reconhecer que as escrituras, como todos os demais
textos, podem conter erros factuais?
A literalidade da Bíblia é uma
postura muito difícil de defender desde um ponto de vista intelectual. As
pré-condições necessárias para que essa ideia pudesse ser considerada
verdadeira são tão absurdas que, se se confirmassem, chegaria a ser difícil
aceitar que Deus realmente pudesse ser tão bom e tão poderoso quanto nos afirma
o cristianismo. Que ainda haja, em pleno século XXI, pessoas que considerem
essa postura aceitável é um indício preocupante sobre o nível de esclarecimento
espiritual de nossa era. Qualquer pessoa minimamente sensata acharia absurdo
transplantar acriticamente um costume ou instituição da idade média para os
dias atuais. Muitos, todavia, são os que acham sensato transplantar sua
religiosidade desse modo.
Pessoalmente,
acho que isso se deve, em primeiro lugar, ao medo de ver ruir o prédio da
ortodoxia. Os cristãos não foram bem sucedidos em desenvolver – como eu,
pessoalmente, acho que os indianos desenvolveram – uma religiosidade que não dependa
da afirmação irracional de verdades dogmáticas. O conhecimento de Deus para o
cristão não é apenas uma experiência espiritual que se restringe ao fiel: ela
exige forçosamente a intermediação da Igreja e a orientação doutrinária de
intérpretes considerados legítimos.
Em
segundo lugar, acho que essa insistência na literalidade do texto revela uma
forma de desamparo espiritual. As pessoas aceitam uma proposição que em
qualquer outro contexto seria considerada absurda porque ela nos apresenta um
relato reconfortante da vida. De acordo com esse relato, todos os nossos sofrimentos, todas
as nossas angústias terrenas um dia farão sentido à luz das delícias celestiais
prometidas pela religião tradicional. É fácil acreditar naquilo que nos agrada:
nós, humanos, somos seres inclinados às "verdades" que
nos convém.
Para
comprovar isso, basta assistir a qualquer programa religioso – católico ou
neopentecostal – veiculado por nossa TV aberta. O enfoque, quase sempre, é numa
promessa primitiva, semi-mágica, de Deus transformar a vida do fiel. Você está
desempregado? Se você tiver fé poderá arrumar um emprego. Seu filho está
envolvido no mundo das drogas? Sua fé em Deus pode tirá-lo de lá. Seu marido é
alcóolatra? Venha para nossa igreja, e deixe que Deus resolva seus problemas. E
qual o fundamento de toda essa encenação auto-enganosa? Um texto que nos
apresenta Deus como um misterioso e paternal juiz cosmológico – que se entretém
julgando quais pedidos irá atender e quais irá ignorar![2]
Uma
terceira motivação, relacionada à anterior, que pode levar uma pessoa a
permanecer numa interpretação literal da religião cristã é um apego infantilizado
às figuras canônicas. Intimamente, o fiel poderia até desejar especular criticamente sobre
quais são os problemas teológicas que estão na base de sua convicção. Mas desde
criança ele foi educado a amar e a se reconfortar com a figura dos santos, da
Virgem Maria, e a imaginar a figura de Cristo na cruz quase como um amigo
íntimo. Deixar sua fé de lado equivaleria a perder esse doce conforto, essa
esperançosa convicção de que, num outro plano, temos uma série de amigáveis
interventores junto ao Pai. As pessoas não se atrevem, portanto, a questionar a
literalidade dos textos que contém relatos sobre essas figuras porque essa
atitude poderia equivaler a nos fazer perder alguns de nossos mais caros
amigos!
Outra razão que talvez leve as
pessoas a insistir no simplismo da literalidade bíblica é a incapacidade de
compreender uma distinção religiosa simples, porém nem de longe óbvia: aquela
entre o símbolo religioso e a verdade simbolizada. Deus é um ser que, por
definição, transcende sua própria criação. Ele está além do tempo e do espaço
e, por esta razão, tentar compreendê-lO a partir de categorias espaciais e
temporais é um esforço vão. O ser humano, por outro lado, está no mundo e na
história. Ele testemunha a sucessão dos acontecimentos, ele observa o mundo a
partir de um ponto específico, ele expressa significados por meio de uma
linguagem que se refere à realidade de forma mediada. Seu conhecimento precisa
partir de sua noção de "eu". Ora, como pode uma criatura histórica
falar sobre o que transcende todas as noções a que sua própria mente está
acostumada? Como pode um ser que tem forma e extensão, que está absorto em si
mesmo, referir-se ao Incriado, ao que é pura pontencialidade, ao que não tem
forma?
Deus, embora possa intervir na história
humana quando o deseja – pelo simples fato de tudo poder – transcende, porém,
na Sua condição de princípio criador, o próprio tempo e espaço. As noções de
antes e depois, em cima e embaixo, dentro e fora não se aplicam à Sua mente. Ao
mesmo tempo em que é infinita benevolência, Ele também é infinito potencial e
infinita inteligência. Tal Ser não poderia se mostrar por completo dentro da
história. Se Ele se manifesta, por um desejo de se comunicar com seus filhos,
num determinado momento e lugar, aquela manifestação, ainda que sagrada, é
necessariamente a expressão de um contexto particular. Para que possa estar no
tempo, Deus precisa de certa "roupagem", uma forma que o torne
inteligível aos seres humanos.
Por ser expressão da vontade do
Criador, essa forma é necessariamente sagrada, e está irrevogavelmente em
contato com o Absoluto. É nesse sentido que a figura de Cristo é eterna e
imortal: por ser encarnação da própria Divindade, ele está, em sua dimensão
divina, além do tempo e do espaço. Nesse exemplo tão radical, sinto necessidade
de admitir que mesmo a forma histórica – o contingente e o acidental, a forma
específica que o Cristo assumiu – é sagrada, por ser fruto imediato da ação
divina.
Mas, se essa forma é sagrada, ela é
sagrada não por ser forma, mas por ser capaz de evocar diretamente Deus. Cristo
possuía dois olhos, um nariz, cabelos e barba, e todos esses atributos eram
sagrados, por fazerem parte de seu corpo. Porém precisamos ter cuidado para não
incorrermos na superstição dos medievais que corriam o mundo em busca de
relíquias de santos: Cristo tem essa forma porque também era homem. Poderíamos,
tolamente, criar cultos para adorar sua figura humana, seus atributos físicos
particulares, porém isso seria deixar escapar o essencial.
A forma histórica específica é acidental.
Se Deus desejasse enviar um messias para os golfinhos, com toda probabilidade
esse messias assumiria a figura de um golfinho. Nesse caso, os demais golfinhos
poderiam até achar que a forma particular de seu salvador era digna de
adoração, porém a qualquer outro observador pareceria ridícula o aparecimento
de um culto específico da barbatana, ou da forma do golfinho. Nós, porém,
talvez assoberbados por nossa vaidade antropocêntrica, não conseguimos esse
distanciamento, e projetamos no eterno e no infinito aquilo que nós
testemunhamos no breve intervalo de nossas vidas. Provincianos do Cosmos,
achamos que a experiência de nosso quintal é a manifestação derradeira do
Absoluto.
As verdades religiosas, portanto,
referem-se a algo inefável, ou seja, ao que pode ser indicado apenas de forma
indireta pela nossa linguagem. Elas evocam, de forma mediada, o fundamento
próprio da realidade, a fonte de onde tudo brota, mas que não conseguimos
discernir, por estarmos nós mesmos dentro de seu fluxo. Como a linguagem não
poderia, mesmo que tentasse, expressar essa dimensão, ela precisa apelas para
um importante instrumento: o símbolo.
Toda mitologia possui, em alguma
medida, consciência de sua natureza simbólica. O próprio cristianismo, em sua
versão esclarecida, possui muita sensibilidade à dimensão simbólica dos ritos
litúrgicos e das imagens santas. Mesmo alguns povos primitivos sabem que aquilo
que seus sacerdotes chamam de deuses não são apenas figuras antropomórficas:
são metáforas para características cosmológicas que dificilmente poderiam ser
expressas em termos analíticos. O mito estabelece comparações pedagógicas,
simplificações que permitem abordar indiretamente o ininteligível.
O cristianismo também é uma religião
riquíssima em simbolismos, porém, por razões difíceis de identificar, muitos de
seus seguidores possuem uma persistente inclinação a ignorar essa dimensão de
sua fé – apesar das sensatas observações de alguns de seus pastores mais
esclarecidos, que merecem todos os nossos elogios. Muitas vezes os fiéis insistem na discussão
de aspectos fáticos irrelevantes – como, por exemplo, se determinado milagre
aconteceu ou não – quando na verdade seria muito mais enriquecedor a busca pela
compreensão das maneiras pelas quais a religião pode permitir ao homem
reencontrar-se com Deus.
Um
exemplo clássico dessa tendência é o problema da ressurreição de Cristo. Essa
não é uma questão acidental para o dogma cristão, é um dos pontos basilares que
sustentam todo o edifício dessa religião. Que Cristo tenha ressuscitado ao
terceiro dia é tomado como a prova definitiva de sua divindade. É a prova de
seu triunfo sobre a realidade humana que o condenou à morte na cruz. Se esse
episódio fosse negado, isso equivaleria – ao menos para os cristãos que tiveram
uma educação tradicional – a uma refutação da fé.
Mas a divindade de Cristo não é uma
questão empírica: é uma questão teológica. É até concebível que ele realmente
tenha ressuscitado por intervenção de Deus – pois Deus tudo pode – e que ele
realmente tenha feito todos os milagres que a Bíblia relata. O ponto principal,
porém, não é a comprovação desses fatos, mas sim a compreensão de que Cristo
transmitiu aos homens uma verdade nova, um conhecimento revolucionário a
respeito do Pai: o de que Ele é bom, Ele é amor, e nos ama. A divindade de
Cristo, portanto, reside na sua identificação direta com Deus, a comunhão de
sua alma humana com o Espírito Divino. Essa é uma verdade libertadora, e
continuaria sendo, pelos tempos dos tempos, mesmo que Cristo não tivesse ressuscitado,
e mesmo que ele não tivesse feito nenhum milagre![3]
Muitos fiéis de diferentes religiões
cometem o erro primitivo de confundir o que é simbolizado com o símbolo.
Atém-se à impressão palpável, sensorial dos objetos religiosos, e esquecem-se
que esses são meros instrumentos para evocar uma outra realidade – a dimensão
do espírito. Uma imagem de Cristo, por exemplo, é sagrada não por reproduzir
visualmente a forma do Salvador, mas por evocar, por meio de uma figura
compreensível à mente humana, o mistério de sua crucificação.
Do mesmo modo, precisamos entender que
a Bíblia não é sagrada por possuir uma formulação verbal específica, mas apenas
por sua capacidade de evocar ao leitor a visão de Deus. Ela contém, em si,
vários símbolos. Ao invés de supormos, como os cabalistas, que o texto original
é sagrado em cada uma de suas letras (o que representa mais um pensamento
mágico que teológico), precisamos compreender que a forma de escritura é
acidental. Ela poderia sofrer – como sofreu ao longo de sua história –
alterações. Ela poderia ser revisada, ampliada ou reduzida, e ainda assim
permaneceria sagrada. O essencial não são os seus episódios particulares, mas
sim o valor do texto como testemunho histórico de um povo que acreditou em
Deus.
Ainda que ela tivesse sido ditada, palavra por
palavra, aos seus autores e copistas por Deus, se ela assumiu uma formulação
histórica e verbal em particular, isso aconteceu apenas porque a mensagem de
Deus precisava assumir alguma forma – qualquer que fosse! Por que o pano de
fundo do judaísmo, por que as influências da filosofia grega? Simplesmente
porque, no momento histórico em que aquela mensagem foi transmitida aos homens,
era esse o contexto intelectual dos debates espirituais. Poder-se-ia até argumentar que esses percalços históricos
como sendo expressão direta da vontade de Deus. Cada vírgula copiada
equivocadamente, cada trecho traduzido por engano seria, também, fruto da
vontade do Criador. Essa forma de argumentação, embora seja empiricamente
irrefutável, é não apenas absurda, mas ela poderia ser utilizada por qualquer
outro povo que possuísse um livro sagrado.
A definição da verdade, portanto, deixaria de ser uma questão racional e
tratar-se-ia de uma discussão de que povo ou Igreja é o verdadeiro emissário de
Deus! Isso não é teologia: é puro etnocentrismo apresentado com uma roupagem
mais pomposa, com toques de metafísica. No fim das contas, nada mais é que a
velha manifestação da inclinação que os homens barbudos possuem, desde as
remotas eras, de se deslumbrar com o próprio umbigo.
Além disso, por que restringir essa
intervenção divina apenas aos redatores da Bíblia? Por que em alguns casos as
pessoas teriam livre-arbítrio ao escrever um texto e em outros não? Deus, que
possui misteriosas razões, poderia até definir por um ato misterioso essa
suspensão parcial da liberdade humana, mas aceitar isso não me obriga nem de
longe a acreditar nas alegações específicas de um povo ou instituição a
respeito da intervenção divina em sua história. Por que não pensar, por
exemplo, que a mão de Deus estava, em verdade, ditando a obra dos filósofos
gregos, ou dos escritos dos chineses e indianos? Por que supor que só o povo
cristão ou o povo judeu seriam os beneficiados dessa predileção divina
tendenciosa? Que critérios poderiam qualificar, à luz do olhar d'Aquele que
concebeu a beleza, a bondade e a sabedoria, povos que não parecem
particularmente mais sábios ou mais merecedores de perdão como os únicos
eleitos de todo o Cosmos? Considerando que muitos outros povos fazem a mesma
alegação, acho muito mais sensato supor que essa alegação seja mais uma balela
racista a constar nos anais dos antropólogos...
Isso significa, então, que a Bíblia
é apenas um acidente histórico, uma compilação casual de diversas experiências
religiosas tidas ao longo de um estendido período por um povo qualquer? Não
chegaria a afirmar isso de forma tão categórica. Simplisticamente supor que,
pelo mero fato de o texto sagrado também possuir uma historicidade, ele deva
ser descartado como fonte de inspiração espiritual (já que se trata de uma mera
compilação de experiências particulares tida ao longo do tempo) pode ser uma
postura interpretativa tão ingênua quanto a do homem que idolatra a Bíblia sem
contextualizá-la. É apenas o outro lado da mesma moeda: a da falta de
compreensão quanto aos problemas subjacentes ao contato entre o eterno e o
particular, o mundano e o divino, associado a um desejo tolo de experimentar o
transcendente de forma imediata.
A Bíblia é, sim, um texto espiritualmente
inspirado, e o povo que a escreveu é eleito no sentido de que foi eleito para
acreditar e conhecer Deus (o que não significa que seja o único povo eleito).
Sua sacralidade reside justo no fato de expressar uma experiência humana,
histórica, de Deus. Não chegarei a afirmar que o livro também seja, como o
Cristo, uma intervenção divina direta na história, porém esse livro
definitivamente foi escrito por homens santos que estavam ardorosamente
empenhados na busca pelo divino. Alguns trechos – os que relatam, por exemplo,
os momentos mais sublimes da Paixão – realmente parecem ao leitor sem
preconceitos como de inspiração sobre-humana. É bem verdade que em algumas
passagens – especialmente nas do Antigo Testamento – a narrativa parece se
perder numa série de miudezas históricas que não fazem sentido nenhum ao homem
moderno. Mas em outras é possível
identificar a mão do santo inspirado – a de alguém que conseguiu vislumbrar uma
dimensão da existência que não se curva às necessidades e particularidades do
aqui e do agora. Não se trata apenas de boa literatura: talvez sejam alguns dos
momentos mais inspiradores da erudição humana, mensagens de consolo aos homens
de bem de todos os povos e de todas as eras – sejam estas, sejam as que estão
por vir.
Como resgatar esse valor espiritual,
essa dimensão simbólica, essa capacidade do texto de nos evocar uma realidade
outra, na qual poderíamos reencontrar o Pai? Certamente não será ensinando o
Deuteronômio às crianças no catecismo, nem apresentando o Gênesis como
argumento contra os cientistas, nos debates sobre a origem da vida e do
universo. Se quisermos que a Bíblia retome seu valor no mundo em que vivemos, é
preciso – ao mesmo tempo em que reafirmamos a sua sacralidade – reconhecer de
forma completa e radical a sua historicidade. Nenhuma concessão pode ser feita
quanto a este ponto: é preciso admitir todos os percalços por que passou o
texto; é preciso respeitar a erudição acadêmica que os estudos bíblicos
alcançaram; é preciso expor o livro ao escrutínio e ataque das evidências, sem
receio de que nossa fé possa ser abalada pelo que nos revelarem os fatos. E
mesmo se a ciência provar que não poderia ter havido Jardim do Éden, que Moisés
não abriu o Mar Vermelho, ou até mesmo que a vida de Cristo não foi exatamente
como nos relatam os evangelhos, nossa fé não precisará ser abalada.
O poder inspirador da Bíblia só
tornará a ser relevante para o homem contemporâneo – o mesmo que se debruça
sobre as escabrosas questões científicas que elenquei na abertura do texto –
quando a Bíblia tiver sido examinada sob o "microscópio". Diria até
que é necessário fazer uma "desconstrução" do texto, ou seja,
identificar os períodos formativos, as contradições, assinalar as influências
de outras doutrinas e de outras religiões, esmiuçar, enfim, como foi possível a
formação do atual cânone e da ortodoxia interpretativa. Quando esse processo
estiver consumado, estaremos preparados para aceitar com tranquilidade aquilo
que a Bíblia tem de acidental, aquilo que, à consciência ética contemporânea,
parece ultrapassado. Poderemos ler as interpelações moralistas dos profetas da
antiguidade sem acharmos que é necessário perseguir pecadores, adúlteras e
sodomitas nos dias de hoje. Leremos as muitas narrativas sobre a fúria divina
como um capítulo da evolução do conhecimento humano acerca de Deus. Nos alegraremos com a fé cristã, sem achar
que para isso devemos condenar quem quer que seja em praça pública. Além disso,
poderemos cultivar nossa confiança em Deus sem medo de sermos taxados de
ultrapassados, fundamentalistas ou socialmente retrógrados. Acima de tudo, nos
tornaremos leitores preparados para receber a verdadeira boa nova, e entender
que as figuras do Reino de Deus e da salvação são simbolismos para o retorno ao
Pai.
Que bela religião seria essa – uma
que compreendesse que as figuras demoníacas e as torturas infernais são uma metáfora
para a dimensão sombria da alma humana! Uma que entendesse que a concepção
medieval de paraíso como um lugar físico cheio de anjinhos rechonchudos é uma
descrição tocante – mas ainda assim infantil – do gozo que é a religação
espiritual com a transcendência. Uma que soubesse que as promessas divinas não
são de milagres baratos que resolverão nossos aborrecimentos domésticos, mas
sim de que a nossa alma pode encontrar um repouso no Pai!
Essa religião se tornará possível
quando aceitarmos inteiramente e radicalmente a dimensão simbólica do sagrado;
quando compreendermos que nossa mente não deve se deslumbrar – como se
deslumbraria uma criança – com os guizos e penduricalhos da liturgia, mas que
deve se exercitar na busca pela revelação. Talvez alguns pensem que, para maior
parte das pessoas, alcançar esse nível de esclarecimento espiritual seja
difícil demais para permitir a difusão dessa forma de espiritualidade. Mesmo
que isso fosse verdade, ainda assim valeria a pena se esforçar para alcançar
essa forma de fé. Um dos maiores males que podem se abater sobre a mente humana
é o fanatismo e a idolatria – e isso não só em razão do mal que essas formas de
pensamento podem provocar em outras pessoas, mas principalmente porque são
essas inclinações que afastam os seres humanos da boa religião. Além disso, a
espiritualidade infantilizada gera uma perigosa ilusão, em especial em pessoas
intelectualmente conscienciosas: a de que toda forma de religião é igualmente
simplória e igualmente enganadora. As pessoas que se convencem dessa mentira se
privam – por uma certa reserva intelectual – da maior bem que eles poderiam
almejar em suas vidas, pela questão que realmente importa: reencontrar Deus.
Além
da liberdade, nosso Pai nos presenteou com um inigualável tesouro – mais
precioso que todas as riquezas da Terra juntas: uma mente capaz de conhece-lO.
Não subestimemos nossa capacidade nos contentando com a cristalização medieval
da teologia. Não cometamos a loucura de supor que a escolástica é o que há de
mais elevado em termos de saber sobre o Divino: mantenhamos uma postura de
eterna busca e eterno exercício, e acostumemos nossos espíritos a olhar para o
alto. Não nos intimidemos com as ameaças dos "mediadores" divinos –
as instituições que por percalços históricos e em razão de motivações seculares
monopolizaram a hermenêutica do sagrado. Busquemos a salvação com a mente
aberta com intenções sinceras, sem medo de monstruosidades imaginadas em
claustros medievais e sem nos iludirmos com terríveis vazios em que creem a
multidão de engrenagens humanas do mundo moderno. Jamais permitamos que quem quer que seja nos
usurpe a salvação.
Acima
de tudo, não nos deixemos iludir por aqueles que dizem que a verdade é complexa
ou obscura demais para que possa ser entendida pelas pessoas comuns. O
cristianismo deve ser para todos: para os eruditos e para os simples. Entendo
que, para aqueles que não tiverem uma desenvolvida sensibilidade filosófica, a
Igreja deve oferecer uma roupagem mais simples para as doutrinas religiosas –
uma que se apoie em noções mais palpáveis – algo que possa ser visto e
admirado. Porém, se os sacerdotes que fizerem uso desses expedientes litúrgicos
não tiverem a precaução de explicar – da forma primitiva que seja – aos seus
fiéis o caráter simbólico desses objetos, corre-se o risco de incorrer numa
quase idolatria. Todo apoio deve ser mero auxílio, um recurso para ajudar as
pessoas a apreender de forma indireta as libertadoras verdades da religião. Não
foi o que fez o próprio Jesus com as suas parábolas? Quando pregava às
multidões, ele não se detia em questões abstrusas sobre a natureza do Pai. Ao
invés disso, transmitia as mesmas verdades por meio de parábolas – curtas
narrativas que não expressavam necessariamente fatos históricos, mas sim
verdades teológicas que de outro modo seriam de difícil compreensão.
Observe-se que, quando Jesus adotou
essa solução, ele não simplificou ou empobreceu a experiência religiosa. Não se
tratava, afinal, de ocultar a verdade, mas sim de torná-la conhecida nos quatro
cantos da Terra. A complexidade dos problemas ainda estava lá, porém aquilo que
antes era debatido apenas pelos doutos tornou-se acessível às multidões. Ele
jamais quis que as pessoas supusessem que aquelas narrativas expressavam toda a
verdade: ele queria convidá-los, apenas, para elevar a mente em direção ao
Alto.
Que
ninguém se prive, portanto, da religião em razão da tolice da religiosidade
institucional. Entendamos que as igrejas são instituições humanas que estão na
história, e que são passíveis dos mesmos erros e limitações que todas as outras
instituições. Compreendamos que doutrina alguma poderia apresentar uma versão
textual definitiva daquilo que é indefinível e que escapa das categorizações
humanas. Mais importante ainda, entendamos que mais importante que se manter
fiel a qualquer ortodoxia é respeitar o mais poderoso instrumento que possuímos
do conhecimento do sagrado: nossas consciências.
Dito
isso, estamos agora preparados para um segundo e importante passo em nossa
busca pelo Pai: o de promover a reavaliação de todo o legado religioso que nos
deixaram os séculos. Com a mente sensível ao problema do símbolo, com a
consciência precavida contra o fundamentalismo, podemos, com serenidade de
espírito, debruçarmo-nos sobre as lições dos mestres do passado. Não sejamos,
afinal, ingênuos a ponto de achar que precisamos reinventar, a todo instante, a
roda. Todo esse processo de negação é apenas um passo preliminar, uma limpeza
intelectual que nos permite iniciar a
jornada.
Sem
nenhuma ajuda, um homem teria poucas chances de conseguir trilhar sozinho o
caminho do espírito. Sozinhos, somos como cegos tateando numa enorme escuridão.
Precisamos de guias, precisamos de homens sábios que nos indiquem por onde ir,
que perigos evitar, que miragens podem nos iludir. Os sacerdotes são muito
criticados porque muitas vezes deturpam sua missão por falta de sensibilidade
às mudanças dos tempos, porém não há como não reconhecer a importantíssima
missão que eles receberam de Deus. Seu papel é o de transmitir o conhecimento
dos santos e profetas às gerações contemporâneas, ou seja, o de tornar a ideia
de Deus acessível aos homens. Sua digníssima missão é a de atualizar a
sabedoria dos séculos.
Do
mesmo modo, a Bíblia deve ser vista como um enorme repositório de inspiração.
Um homem de bem talvez pudesse, meditando em silêncio e orando, chegar por si
só a importantes intuições religiosas. Porém, ao invés de ter que por seus
próprios esforços repensar cada um dos problemas espirituais que assolam o
homem, ele pode se valer da experiência acumulada ao longo de milênios. Apenas
um tolo poderia supor que, pelo fato de muitas leituras equivocadas serem
feitas desses textos hoje em dia, eles não possuem valor. Desde que o fiel seja capaz de uma leitura
inteligente, ele poderá encontrar na Bíblia consolo e inspiração em fragmentos
tão inspirados quanto aquele que nos ensina: "aquele que não ama não
conhece a Deus, porque Deus é amor." (João 4: 7).
A
sabedoria desse trecho é uma intuição teológica genial, uma percepção que será
libertadora tanto para o eremita do deserto quanto para o habitante de uma
ultra-moderna megalópole do século XXI. Esse é o verdadeiro valor da Biblia: o
de servir de testemunho espiritual aos séculos futuros, de lembrar aos homens e
mulheres que viverão num planeta ainda mais sombrio que o nosso que, independente
de qualquer desgraça ou sofrimento que possa se abater sobre nós, a vida humana
é boa, pois é uma dádiva de um pai benevolente.
Respondo, portanto, afirmativamente
à pergunta que me coloquei: é preciso reabilitar a Bíblia para um novo mundo. É
preciso transformá-la novamente numa experiência iluminadora para todos os que
desejem lê-la de coração aberto: sejam eles habitantes de uma remota
cidadezinha do interior, sejam os cientistas que trabalham nas mais
sofisticadas pesquisas. Para que isso seja possível, é preciso jogar no lixo
todo o entulho das interpretações fundamentalistas, etnocêntricas ou que, de
qualquer forma, aviltem a inteligência humana e suspendam nossa capacidade de julgamento
objetivo da realidade. É preciso promover um exercício de amadurecimento
hermenêutico, como forma de se precaver contra qualquer leitura literalista e
simbolicamente insensível. Acima de tudo, é preciso combater ativamente e sem
contemporizações qualquer tentativa de transformar a Bíblia num argumento para
promover a perseguição de qualquer grupo, sejam ateus, homossexuais, minorias
étnicas ou adeptos de outras religiões. Precisamos exercer nossa leitura tendo
plena consciência de que Deus, se for realmente tão poderoso quanto acreditamos
que seja, não precisa de nossa ajuda para exercer Sua justiça e que a nós, suas
criaturas, cabe apenas praticar o bem e se apiedar daqueles que nós julgamos
estarem longe do Pai. O século XXI precisa do cristianismo, e para que o
cristianismo possa servir-lhe, ele terá que ser um cristianismo do século XXI:
crítico, racional e sensível às descobertas da ciência.
É
muito difícil desenvolver uma espiritualidade esclarecida, sensível às
problemáticas do símbolo e às tentações do fetichismo da forma. Porém
empreender essa jornada é necessário. Supor que a única religiosidade possível
seja a dos fanáticos e proselitistas é um erro, pois equivale, como
assinalamos, a estabelecer uma falsa dualidade entre possuir uma religião ruim,
e não possuir religião nenhuma. Há pessoas que sinceramente gostariam de
empreender sua busca por Deus, mas não tem coragem de fazer isso porque suas
objeções à religiosidade institucional é grande demais para que eles possam
levar sua busca a sério. Ingenuamente e em prejuízo de sua própria paz de
espírito, eles se privam da verdade em nome da prudência.
Eis o que eu digo: a verdadeira
religião é o maior dos bens por que podemos almejar. É por meio dela que se
encontra a generosidade, a compaixão e, talvez mais importante que tudo, a
aceitação de nossa própria identidade como habitantes de um mundo que muitas
vezes nos parece brutal. Esse esforço vale a pena, pois por ele o homem chega à
liberdade e ao amor divino.
Há fortes indícios para crer que o
século XXI será um século muito mais religioso que o século XX. Se essa
percepção se confirmar, então que a religião retorne em sua verdadeira
roupagem, ou seja, como uma inspiração para os mais elevados ideais éticos, e
não como um pretexto para o fervor irracional e o comportamento de manada. Não
confundamos consolo espiritual com entorpecimento mental, e lembremos sempre
que, assim como a fé, a inteligência, a sensatez, a prudência e a sabedoria são
dádivas de Deus. Cultivemo-las como o mais valioso tesouro de nossa
civilização.
Observação do autor
Nenhuma
das críticas que eu tenha feito neste texto ao cristianismo ou a certas formas
de leitura da Bíblia foi gratuita. Não
são ataques de quem quer ver a religião diminuída, mas sim um esforço de
compreensão de quem deseja que a boa religiosidade volte a ter um papel central
na vida do homem, e que deseja que a Bíblia possa continuar a inspirar as
gerações que ainda não nasceram.
Os
verdadeiros inimigos da religião não são os pecadores, ou sequer os ateus, mas
sim os fundamentalistas. A mau religião deve ser duramente combatida porque ela
pode nos afastar de um dos mais elevados ideais que podemos almejar: a boa
religião. Esse é um combate que é
travado não nos púlpitos ou nas praças públicas, mas sim dentro de nossos
próprios corações. Que, em nossas orações, peçamos a Deus não só alívio para
nossos sofrimentos, mas também maior compreensão e ajuda para que possamos
encontrar o tortuoso caminho que leva a Ele.
[1] Não foi Javé quem inventou a guerra e o
extermínio dos povos conquistados. O memorável trecho em que ele, num surto
precoce de sionismo, autoriza o povo eleito a dizimar os cananeus é apenas uma
reformulação religiosa de uma prática que era corrente naqueles sanguinolentos
anos. Mas foi a evolução da mesma ideia de um Deus impessoal como juiz de todos
os homens que permitiu o aparecimento de interdições morais aplicáveis a todo
tempo e todo lugar e que, no fim das contas, favoreceram aqueles que não tinham
como se defender da crueza da força bruta.
[2] Não me entendam mal, não quero diminuir ou
desmerecer o poder da oração. Deus tudo pode – pode até mesmo intervir no curso
da história que ele mesmo pré-determinou. Porém apresentar a religiosidade como
uma espécie de contrato com Deus é perder o essencial da experiência espiritual
humana. Não se trata de enriquecer, não
se trata de curar suas doenças, ou sequer de levar uma vida feliz: trata-se de
reconectar-se à mente do Pai, para compreender o sentido que nossa vida possui.
Trata-se de entender que mesmo o maior de todos os sofredores ainda assim
encontrará amparo na sua infinita benevolência – não necessariamente um amparo
pela cura ou pelo alívio, mas pela identificação imediata com a obra divina.
Esse enfoque pragmático do cristianismo contemporâneo é um dos maiores sintomas de sua miséria simbólica e teológica. Como não conseguem convencer os homens de que a mensagem de Deus é libertadora no plano espiritual, os sacerdotes apelam para as curas milagrosas e as promessas de prosperidade. Se tivessem lido Fausto, entenderiam esses senhores que não se fazem contratos com Deus – apenas com o demônio podem-se estabelecer barganhas. Caso depositássemos nossa fé apenas nessas expectativas, criaríamos uma perigosa tensão. E se Deus não atende nossas preces? E se nossos filhos têm um destino trágico? E se meu sofrimento não encontra alívio? Acabará, então, a minha fé? Pobre do homem que condiciona sua espiritualidade à provisão mundana, pois ao assim fazer, ele se priva do maior alívio que a religião pode proporcionar – a paz, a compreensão de que, não importa o que aconteça, tudo retorna ao Alto.
Esse enfoque pragmático do cristianismo contemporâneo é um dos maiores sintomas de sua miséria simbólica e teológica. Como não conseguem convencer os homens de que a mensagem de Deus é libertadora no plano espiritual, os sacerdotes apelam para as curas milagrosas e as promessas de prosperidade. Se tivessem lido Fausto, entenderiam esses senhores que não se fazem contratos com Deus – apenas com o demônio podem-se estabelecer barganhas. Caso depositássemos nossa fé apenas nessas expectativas, criaríamos uma perigosa tensão. E se Deus não atende nossas preces? E se nossos filhos têm um destino trágico? E se meu sofrimento não encontra alívio? Acabará, então, a minha fé? Pobre do homem que condiciona sua espiritualidade à provisão mundana, pois ao assim fazer, ele se priva do maior alívio que a religião pode proporcionar – a paz, a compreensão de que, não importa o que aconteça, tudo retorna ao Alto.
[3] Mas, sendo Cristo também Deus, Ele poderia, sim, fazer os milagres, e
poderia inclusive ressucitar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário