terça-feira, 24 de setembro de 2013

As Invasões Bárbaras

Em homenagem às minhas férias, que chegam, um texto ameno com as minhas opiniões pessoais sobre o turismo - que eu mesmo pretendo fazer a partir deste sábado.

Em razão do iminente ócio programado, não atualizarei o blog pelas próximas duas semanas.

Eu sei, será duro viver  sem meus textos...


A Administração






            Quero aqui abordar um problema da mais elevada importância histórica.
            Como se sabe, a historiografia atribui grande peso às contradições e fragilidades internas do Império Romano ao tentar explicar sua gradual e definitiva queda. Contudo, jamais se deixou de considerar a importância das invasões dos bárbaros germânicos ao se analisar o fenômeno. Os próprios contemporâneos narram com grande aflição a chegada das hordas do norte, e a destruição que eles deixaram atrás de si.
            Até hoje não se sabe exatamente o que provocou esse grande movimento migratório das populações teutônicas em direção ao sul. Alguns acadêmicos acreditam que o avanço dos hunos, vindos das estepes da Ásia Central, forçou os germânicos a buscar novos territórios a sudoeste. Outros acham que a pressão sobre as fronteiras de Roma existia desde muito cedo, e que a fragilidade do Império apenas tornou possíveis incursões que antes eram impedidas pelas legiões imperiais.
            Evidências historiográficas recentemente descobertas vêm, todavia, pondo em xeque a capacidade elucidativa das velhas explicações. Uma compreensão mais aprofundada das condições de vida dos invasores – bem como de suas motivações – vêm tornando possível novos insights sobre o problema.
            Os arqueólogos vêm descobrindo que as tribos teutônicas viviam – ao contrário do que se pensava – numa situação de grande prosperidade material. A exportação de cerveja e de carroças – cuja qualidade era reconhecida em todo o mundo civilizado –, sua moral de trabalho diligente e hábitos de consumo parcimoniosos possibilitaram às sociedades do norte europeu o acúmulo de excedentes econômicos. Suas cidades eram prósperas, organizadas, com excelentes escolas e sistema de transporte público invejável. O que nós hoje chamamos de bárbaros germânicos eram populações endinheiradas, educadas e – por que não admitir – ligeiramente entediadas com a previsibilidade da vida em seus reinos eximiamente administrados.
            Justo àquela época, Roma alcançava a saturação de seu expansionismo. O domínio militar e econômico que eles impuseram em todo o Mediterrâneo trazia para a capital do Império povos e riquezas dos mais afastados cantos da terra. Era uma metrópole fervilhante, com excelente pão e excelente circo. A administração corrupta da cidade, desonerada da necessidade de sustentar materialmente as expedições militares que em outros tempos haviam expandido as fronteiras, agora se dedicava à construção de monumentos deslumbrantes e à promoção de mega-eventos para as irrequietas massas de plebeus.
            Não demorou para que a fama da Cidade Eterna alcançasse os reinos do norte. As famílias mais endinheiradas começaram a ver como um sinal de status a possibilidade de fazer uma viagem internacional. Nas altas rodas, não raro se ouviam discussões sobre as maravilhas das sete colinas, sobre o Capitólio, o Mercado de Trajano...
– Próximo ano meus filhos vão numa excursão assistir aos jogos dos gladiadores no Coliseu. – era um comentário que não raro se escutava nos salões godos e visigodos.
– Ah, sim? Pois meu pequeno Odorico está indo fazer intercâmbio de um ano na Siracusa.
A cultura clássica se tornara uma predileção das industriosas mas culturalmente insípidas bestas loiras do norte. Panfletos falando sobre as maravilhas da “cidade que nunca dorme” começaram a ser distribuídos nos principais feudos. As louras e rechonchudas donzelas teutônicas adquiriram uma queda pela culinária da península itálica.
– Você já comeu no Pastas Estruscorum?
– Sim! É uma delícia! É o único restaurante da cidade com três coroas de louro no Guia Michelonius. Você já provou o tagliatellus carbonaris de lá? É divino!
As vanguardas elitistas abriram caminho para uma das mais truculentas invasões históricas jamais registradas. Em pouco tempo, as vias do Império foram tomadas de assalto por hordas de turistas ávidos por novidades.
            Os efeitos, como não poderiam deixar de ser, foram catastróficos. As ruas encheram-se de sujeira, as estalagens viviam lotadas e, pior de tudo, os preços dispararam, com efeitos sentidos no cotidiano dos habitantes locais. Uma refeição que antes custava apenas alguns denários passou a custar vários áureos. Tomar vinho tomou-se impraticável, e os estabelecimentos mais badalados – como o próprio Pastas Etruscorum – tornaram-se proibitivos mesmo para os patrícios.
            Foi nesse período, também, que se agravou a política imperial dos mega-eventos. Rios de dinheiro público foram utilizados para construir e ampliar os estádios onde aconteciam combates entre lutadores de MMA – naquela época conhecido como gladiadores. Só a reforma do Coliseu, por exemplo, deixou os cofres públicos profundamente endividados. Isso para não falar dos bandos de vândalos que – embriagados e ultra-excitados com as carnificinas – faziam arruaça pelas ruas da cidade depois dos espetáculos.
Além disso, templos e construções de inegável valor histórico foram derrubados para darem lugar a parques aquáticos – ou banhos públicos. Toda a perspicácia dos engenheiros foi revertida das obras de utilidade pública para construir enormes aquedutos para abastecer esses templos do ócio e da ostentação, onde prostitutas vindas das províncias asiáticas ofereciam técnicas secretas de massagens aos executivos dispostos a pagar algumas moedas a mais.
Também foi nessa época que a saturnália – ou carnaval – tornou-se a grande celebração da desagregação cósmica que é ainda hoje. A antiga e singela festa de agradecimento aos deuses da fertilidade foi transformada num mero pretexto para uma multidão de turistas adolescentes embriagados fazerem todo tipo de obscenidade nas vias públicas, ao som de contagiantes hits tocados por músicos da província africana.
            Os efeitos sobre os monumentos, também, foram devastadores. Acredita-se, por exemplo, que o Capitólio tenha tornado-se a ruína que é hoje por causa da multidão de turistas vândalos que todos os dias visitavam suas instalações. Sem se preocupar em preservar o patrimônio cultural e arquitetônico da cidade, eles subiam onde não deviam, entupiam os banheiros, jogavam papiros no chão e – o que talvez tenha causado mais estrago – ignoravam peremptoriamente as recomendações dos guias e arrancavam pedaços da arquitetura para levar como souvenir para casa.
            Mas não resta dúvida de que a verdadeira derrocada de Roma aconteceu por razões econômicas. Os grandes proprietários rurais, atraídos pela nova perspectiva de ganhos fáceis nas capitais, deslocaram enormes contingentes de lavradores para os recém-abertos parques temáticos e cassinos. Os escravos que antes eram responsáveis pelo cultivo da terra passaram a atuar como figurantes de legionários e centuriões, ou encenavam musicais de apelo fácil sobre a Eneida ou os poemas homéricos. Como resultado, a sociedade romana entrou numa fase de profunda carestia, e os alimentos quase desapareceram dos mercados. A entrada de grande fluxo de moeda trazida pelos germânicos endinheirados agravou ainda mais a inflação, com efeitos pesados sobre o poder aquisitivo da plebe. Foi só uma questão de tempo até eclodirem as primeiras revoltas.
            Além disso, os grandes chefes tribais do frígido Norte, encantados com o clima mais ameno do Lácio, passaram a comprar propriedades nos subúrbios de Roma e nas regiões agrícolas. Ao fazer isso, eles implantavam no Império as técnicas germânicas de produção, e substituíam o antigo escravismo pela servidão. A paisagem, antes pontilhada por agradáveis e iluminadas villas de arquitetura clássica, em pouco tempo se viu abarrotada de soturnos castelos góticos, tão ao gosto dos milionários visigodos.
            Há quem acredite que a política de isenção de vistos foi a verdadeira causa da queda do Império Romano do Ocidente – já que o o Império do Oriente, onde as políticas migratórias eram muito mais rigorosas, sobreviveu por quase outro milênio inteiro, até a tomada de Constatinopla pelos turistas turcos. Todavia, o tema ainda é objeto de debate acadêmico, e não são poucos os pesquisadores que acreditam que Bizâncio só pode sobreviver por causa dos preços das passagens nas galeras – que, ao permanecerem altos por causa do intenso comércio com a Ásia, impediu que as hordas teutônicas chegassem até aquele lado do mundo conhecido. Outros acreditam que os monumentos orientais – mais singelos e menos imponentes que os da capital – não eram muito do gosto dos turistas bárbaros, mais ávidos por uma arquitetura grandiloqüente e pretensiosa.
            Em que pesem as divergências teóricas, pouco a pouco se consolida todo um ramo de estudo sobre a relação entre a decadência de uma civilização e o aumento do turismo. Alguns historiadores mais alarmistas, por exemplo, ao entenderem melhor o mecanismo que levou à destruição de Roma, já começam a apontar o fato de o continente europeu ter se tornado um enorme museu a céu aberto – especialmente para os turistas vindos da Ásia do Leste – já pode ser interpretado como o sinal definitivo do fim da Civilização Ocidental.  Será talvez o início de uma nova idade das trevas, em que o conhecimento terá de ser preservado nas bibliotecas de mosteiros, que tentarão resistir às investidas de hordas de jovens mochileiros tirando fotos com seu smartphone das refeições que pedem no exterior e publicando no instagram.
Não será um sinal dos tempos que o primeiro volume do estudo “Declínio e Queda da Civilização Europeia”, do pesquisador cearense Eduardo Gibão, tenha estampada em sua capa a foto de uma turista brasileira sorrindo em frente à Torre Eiffel?   

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