Jamais teria
imaginado que eu mesmo pudesse incorrer em forma tão mesquinha de preconceito.
Agora, que pouco a pouco vou me tornando mais parecido com aqueles que odiei
por toda a vida, percebo que veneno é para a alma a presunção com que julgamos
nossos iguais.
Quando era mais jovem, causava-me
agudo horror a afamada antipatia dos funcionários públicos. Se precisava
carimbar um formulário na escolaridade da Faculdade de Direito e recebia da
atendente, como resposta ao meu gaguejante mas sincero “bom dia”, nada mais que
um olhar de desprezo ou um grasnado de harpia, sentia-me mortalmente ofendido.
Murmurava-lhe as mais pavorosas maldições que aprendi com as rezadeiras do Cariri,
desejava-lhe uma morte lenta e agonizante, e orava aos deuses da cortesia para
que cobrissem de pústulas até a sétima geração de seus descendentes. Acontece
que, como todo sertanejo, considero a antipatia e a falta de modos pecado muito
mais grave que a crueldade – contra a qual nós estamos, emocionalmente, muito
mais aptos a nos defender.
Imagine então o meu caro leitor qual
não foi meu espanto ao dar-me conta, quando chegava hoje pela manhã ao
trabalho, que por pouco não respondi ao bom dia que o segurança me deu! Assustado
com o despontar dessa nova característica em minha alma, minha primeira reação
foi de pânico: estaria eu me tornando, pouco a pouco e sem me dar conta,
exatamente aquilo que sempre detestei com todas as minhas forças – um burocrata
infeliz e intratável?
Apavorado, tranquei a porta de meu
escritório e fiz o que sempre faço em meus momentos de insegurança
profissional: encolhi-me embaixo da escrivaninha e chupei o dedo em posição
fetal. O estratagema surtiu seus efeitos, pois alguns segundos de sucção
sentindo o familiar sabor de meu polegar bastaram para me acalmar e chegar a
novo entendimento do que se havia passado comigo. Entrei na fase da
compreensão.
Por que os burocratas não costumam
responder aos “bom dias” que lhe dirigem? Não é, como muitos imaginam e como eu
mesmo supunha quando jovem, por defeitos de caráter ou por uma especial
depravação característica à nossa classe. Em verdade, o trato diário com carimbos,
comprovantes, declarações e termos de toda espécie acostumam o burocrata a
manter vivo um senso de autenticidade poucas vezes encontrado no mundo
laico. As próprias regras da moderna administração pública – muito mais
rigorosas do que supõem os que acham que Brasília é uma festa – pairam como
ameaça sobre as cabeças calvas dos servidores públicos que, a todo instante, se
policiam para não cometerem um deslize.
E é por amor à verdade, eu afirmo,
que nós burocratas não respondemos ao bom dia. Pois haveremos de convir que o
pressuposto empírico do cumprimento é o fato de o dia estar bom – ou pelo menos
a possibilidade de que ele melhore, o que daria espaço à interpretação de que
ao cumprimentar, a pessoa está desejando ao seu interlocutor um dia melhor. Bem,
se o funcionário acabou de chegar ao trabalho, ele tem diante de si toda uma
jornada de trabalho, na qual estará atolado até o pescoço de exasperantes
pendências, como, só para citar o exemplo mais clássico, a necessidade de
trazer a essa multidão de ovelhas desgarradas que são os cidadãos a luz que só
a burocracia – esse lúmen da civilização asséptica do século XXI – pode oferecer.
Como poderia, pergunto eu, estar seu dia bom, se há pelo menos oito horas de
tormentos pela frente?
Se o “bom dia” é dado ao longo do
expediente, a lógica é a mesma: o funcionário está com a bunda cansada de ficar
sentado – o que pode, inclusive, agravar-lhe a hemorróida –, aborrecido e com a
vista doendo de tanto compulsar documentos de letrinhas miúdas. Ao cidadão que
lhe sorri – cidadão esse que veio sabe-se lá de que terra livre e benfazeja –
nem sempre é fácil compreender que não, que o dia não está bom, não vai
melhorar, e que a única coisa decente a se fazer é não mencionar o assunto.
E por que, também, o funcionário
público às vezes sequer dá boa noite quando sai do trabalho, já que, ao menos na
teoria, esse é seu supremo instante de liberdade – sua alforria diária para
aproveitar as poucas horas de vida que lhe restam? Estou inclinado a acreditar
que, de fato, os burocratas são mais propensos a reagir aos “boa noites” do que
aos “bom dias”. Ainda assim, sei muito bem que, quando se sai exausto da
repartição, consciente da pilha de pendências que ficou para o dia seguinte,
ameaçado pela certeza do engarrafamento e, pior de tudo, sendo muitas vezes
obrigado a usar o precioso tempo livre para resolver as aporrinhações
domésticas, é difícil, na prática, aceitar que a noite está boa. Ainda mais
lembrando que no dia seguinte começa tudo de novo.
Eu até diria que o silêncio do
funcionário público ao bom dia que lhe dão é, na verdade, sinal de extrema
compostura, já que a vida miserável que ele leva ao longo de tantas décadas
desse seu repetitivo obrar justificariam uma enxurrada de impropérios em resposta. Chego a
suspeitar que não seria preciso forçar muito a interpretação para enquadrar o
singelo cumprimento num caso de flagrante desacato a autoridade – um gesto
despudorado de ironia lançado contra o fiel guardião dos bens e interesses
públicos, (o que poderia, inclusive, motivar um processo judicial se o funcionário não
tivesse, como os grandes magistrados da antiguidade, esse amor à harmonia social e essa benevolente condescendência com os vícios da plebe que, com seus impostos, o sustenta).
Bem, pelo menos foram tais argumentos que me
convenceram a sair de baixo da escrivaninha. Espero que não seja um processo
psicológico de negação ao fato de que, pouco a pouco, estou me transformando
nesse aborto teratológico, esse goblinóide obeso e calvo, de rosto esburacado
pela bexiga, genitália carcomida pelo gálico, dentes amarronzados pelo fumo, de
alma mais podre que seu fígado cirrótico, essa aberração lombrosiana a que dão
o nome de funcionário graduado.
Antes virar cronista ou limpador de
latrinas!
Se, para um funcionário público, o "bom dia" é tão doloroso, imagino a ânsia e o desespero de um operador de telemarketing, tendo que pronunciar incontáveis vezes tais cumprimentos, em sua profissão tão alegre, cheia de vida e, acima de tudo, nada estressante! XD
ResponderExcluirAh, as crônicas que eu escreveria se fosse operador de telemarketing!
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