Alguém claramente deixou a preparação da abertura da Copa para última hora |
Eduardo Siebra, Pyongyang, 10 de julho de 2014
Muito se escreveu na imprensa
sobre os problemas na preparação da Copa do Mundo de 2014: os atrasos na entrega dos estádios e
aeroportos, os problemas de segurança, os protestos, etc. Alguns chegaram a
duvidar que fosse haver uma Copa: o campeonato iria se tornar um fiasco
nacional – prova da total incapacidade do povo brasileiro de organizar um
evento tão grande.
Mas,
ainda que o resultado das partidas não esteja saindo exatamente como nós
queríamos (sete a um foi fogo!), há Copa do Mundo. Os jogos têm acontecido sem grandes incidentes
(para os padrões de qualidade vigentes entre o equador e o trópico de
capricórnio, pelo menos), os turistas têm se divertindo às mil maravilhas e
mais uma vez, contra todas as expectativas, o Brasil mostra sua prodigiosa
capacidade de resolver tudo na véspera.
Por
que isso? Depois de alguma meditação sobre o fenômeno e sobre nosso caráter
nacional, cheguei à conclusão de que existe um claro padrão em nosso
comportamento. Por maior que seja a desorganização, sempre as coisas dão certo
no final. Coincidência? Claro que não. A imagem do brasileiro desleixado não
passa de um pré-conceito etnocêntrico dos que tentam julgar nossos métodos de
administração usando critérios nipônicos. É um equívoco que nasce do
desconhecimento de nosso sofisticado método de gestão do caos.
Poder-se-ia até pensar que as
palavras “ordem e progresso” estampadas na nossa bandeira não passam de um
lapso de bem-humorada ironia dos fundadores de nossa República. Eu digo que é o
oposto, que é coisa muito séria. Não esqueçamos que a principal ideologia que
inspirou a Proclamação da República foi o positivismo. Quero provar que o nosso
jeito de ser é, na verdade, extremamente calculista e fiel a um espírito de
rigoroso cientificismo!
Como, se o Brasil parece ser
o país mais esculhambado do orbe? O que acontece é que, enquanto a
racionalidade cartesiana fica enfurnada quebrando a cabeça com cálculos
diferenciais, a racionalidade
tupiniquim é morena, toma caipirinha e vai à praia aos sábados. Já está
passando da hora de alguém se levantar contra essa estória de dizer que o povo
brasileiro é desorganizado, e de apresentar ao mundo a mais original das nossas
criações: a Teoria da Ordem e Progresso.
Na base dessa concepção está
a percepção existencial de que a coisa mais valiosa do mundo é a vida humana.
Enquanto um romancista francês precisa em média de 2.000 páginas para encontrar
o tempo perdido com a escrita dessas mesmas 2.000 páginas, todo brasileiro tem
plena, total e absoluta consciência de que o mais precioso dos bens é sua vida
– ou, o que dá no mesmo, seu tempo ocioso. Essa percepção nasce do singelo fato
de o brasileiro viver num ambiente onde a temperatura das águas dos rios permanece
adequada para banho durante o ano inteiro.
Os povos que vivem em
latitudes mais altas que as nossas estão sujeitos a radicais mudanças de
temperaturas ao longo do ano. Quando o inverno chega, um indivíduo – ou cigarra
– que não tenha se preparado simplesmente morre de fome ou de frio. Nos
trópicos, ainda que seja verdade que o índio que quer comer uma tapioca
quentinha precisava se dar ao trabalho de plantar mandioca e depois fazer a
farinha, a escassez das regiões temperadas jamais é sentida com a mesma
intensidade. Em maior parte do nosso território, o clima oscila entre quente,
mais quente ainda e quente pra chuchu, o que significa não apenas que nossos
ecossistemas são mais exuberantes de pitangas e cajus, mas também que durante o
ano inteiro é agradável pular na água.
Não é à toa que quando os
portugueses aportaram em nossas praias, nossos índios estavam pelados, alguns
gostosamente se balançando numa rede. Para entender quão relevante é, de um
ponto de vista histórico, a inexistência de formas autóctones de civilização
superior em território brasileiro, é preciso recordar que, segundo as teorias
mais autorizadas, nossos índios chegaram à América vindos da Ásia pelo Estreito
de Bering (ou por grandes navegações transoceânicas). Se aqueles tabaréus que
saudaram tão amistosamente Cabral e Pero Vaz de Caminha nas praias baianas
viviam em ocas de palha, definitivamente não era por falta de capacidade
cognitiva: esses índios eram nada menos que um bando de japoneses e chineses
que migraram para essas bandas numa remota era!
Imaginem só... Enquanto seus
parentes tiveram que lidar com todo a chateação implícita na idéia de
civilização – ou seja, ábacos, katanas, harakiri, milhares de ideogramas e um
modelo desenvolvimentista com foco nas exportações – nossos asiáticos podiam
simplesmente passar a tarde agradavelmente deitados numa rede, aproveitando o incrível
azul de nosso céu. Para que estresse com criações industriosas, se eles podiam
desde já aproveitar o ápice de prazer que a sociedade pós-industrial
globalizada pode proporcionar – eternas férias num resort tropical cheia
de belas nativas?
Eu diria que essa é a
percepção fundamental da psique brasileira ainda hoje: sempre que você está
sozinho dentro de casa fazendo o que quer que seja, há alguém se divertindo
numa festa, ou tomando banho de piscina, ou bebendo cerveja gelada. Pior ainda:
em todo e qualquer instante em que você estiver trabalhando, há alguém
tomando banho de cachoeira, comendo siriguela, pescando no Rio Tocantins, ou,
pior de tudo, fazendo sexo.
Se transpuséssemos nosso “eu”
imaginário para um país de cultura mais diligente – a mesma Alemanha que tão
amargamente nos desclassificou na Copa, digamos – a intuição seria muito
diferente. Sempre que alguém está sozinho dentro de casa, no mesmo instante
haverá alguém redigindo sua tese de doutorado sobre Habbermas, arduamente
empenhado num trabalho administrativo enfadonho mas de claras implicações
sociais, treinando de forma séria e profissional a seleção de futebol ou
simplesmente resmungando sobre como o clima está porco neste inverno. No caso
extremo da Suécia, onde a pessoa que fica deitada descansando claramente sente
mais frio do que aquela que aquece seu corpo com os repetitivos movimentos do
trabalho pesado, não é à toa que os indicadores econômicos sejam tão
positivos.
Todos esses arrodeios são
para provar que o homo brasiliensis fez a sua escolha. Exportar smartphones
dá muito trabalho, e exigiria de nossos estudantes uma quantidade
inaceitável de horas trancafiados em salas de estudo. Resumindo o problema: ao
estudar, nosso estudante universitário tem muito mais a perder do que o
estudante coreano – que, além de ter que enfrentar os gélidos ventos da
Manchúria no inverno, tem como alternativa ao estudo a paquera, por mensagens
de telefone, com as coreanas – que, apesar de lindas, são as mais confucianas[1]
das mulheres leste-asiáticas. Não é determinismo geográfico, é apenas o
desdobramento da percepção de que pessoas inteligentes, quando confrontadas com
uma opção, escolherão, via de regra, aquilo que mais lhes favorece. Em
linguagem econômica, poderíamos dizer que o custo de oportunidade de estudar ou
de trabalhar nos trópicos é alto demais para que essas atividades sejam levadas
a sério por um indivíduo capaz de fazer escolhas racionais.
O princípio nuclear da
mundivisão brasileira é a lei do esforço mínimo. Essa é a expressão
suprema de nosso espírito de objetividade. Um indivíduo de país temperado que
deseje assegurar para si o máximo de bem-estar precisa, de fato, empregar algum
esforço para conseguir os recursos econômicos necessários à compra de
aquecedores, cachecóis, edredons e panelas de fondue. A preguiça – e, como
conseqüência, a pobreza – significam, de fato, um terrível desconforto durante
a estação fria. No Brasil não: como o ambiente é tão agradável e convidativo, o
supremo bem é ficar à toa. Morrer de frio ninguém morre. Pode-se até sentir
fome, mas, mesmo então, há sempre o último recurso de comer bunda de tanajura
torrada! O ponto é que, se tomarmos a definição clássica do homem econômico (um
maximizador de utilidades!) e a aplicarmos ao contexto tropical, teremos que
admitir – retomando meu argumento – que é irracional trabalhar num ecossistema onde a água dos rios, lagos
e oceanos é apropriada para o banho durante o ano inteiro. Mais do que um
simples mandrião que se esquiva de suas responsabilidades, o brasileiro é um
circunspeto planejador, com plena consciência das opções existenciais ao seu
alcance. Muitos habitantes das latitudes temperadas trabalham para conseguir o
que nos trópicos se consegue de graça!
Todo empreendimento levado a
cabo por nosso povo é inspirado pelo atávico e subliminar desejo de voltar nu
para a praia. Nosso gênio é especialmente inclinado às realizações artísticas
ou intelectuais que são feitas com alguma medida de diversão (e.g. a poesia, a
música popular, a dança) e que podem ser praticadas na areia do mar (e.g. a
poesia, a música popular, a dança) e terrivelmente avesso a todo projeto que
nos exija ficarmos trancafiados em algum lugar pouco iluminado (e.g. ganhar
prêmios nobels).
Inspirado por seu rigoroso
sistema de racionalidade, o brasileiro que se lança a uma tarefa específica –
tal como a organização da Copa do Mundo – faz a seguinte pergunta: qual é o
mínimo de esforço possível que eu preciso fazer para que esta tarefa seja
cumprida? Observe-se, não se trata de saber qual é o esforço necessário para
que a tarefa seja cumprida de forma exemplar, mas apenas de saber
quais são os esforços mínimos necessários para assegurar que a vaca não vá para
o brejo (cenário que impediria o tão almejado objetivo de voltar logo para a
piscina, já que o fracasso sempre acarreta a necessidade de trabalhar ainda
mais para tirar a bendita vaca do brejo e trazê-la de volta ao curral).
Nem de longe tenho a
pretensão de supor que sejamos o único povo do mundo a fazer esse cálculo
conjetural. Afinal, mesmo que se pretenda cumprir determinada missão com
diligência, é importante saber qual é o mínimo necessário para evitar o cenário
de um fracasso. A genialidade brasileira – e o ponto realmente inovador da
nossa Teoria da Ordem e Progresso – foi ter descoberto que esse mínimo de
esforço necessário está, na verdade, muito abaixo do que outros povos costumam
supor!
Essa descoberta foi possível
após séculos de experimentação empírica com o que poderíamos chamar, para fins
pedagógicos, de caos marginal. Nossos antepassados, na medida em que iam
articulando o Estado, instalando nosso sistema produtivo, ou expandindo nosso
território, sempre tentaram alocar seu nível de esforço no nível mais baixo
possível. Como era de se esperar, em muitas ocasiões, a coisa desandou e o
barraco, literalmente, caiu. Porém, após reiterados testes na fronteira do
colapso, o brasileiro intuitivamente descobriu – muito antes de o matemático
Nobert Wiener sequer ter sonhado em fundar a ciência cibernética – que os
sistemas sociais, uma vez instalados, possuem uma inclinação natural à ordem ou
à homeostase. Ou seja, ele aprendeu a manter suas instituições com um nível
radicalmente baixo de esforço – sempre à beira do colapso, mas sempre tentando
evitar que o colapso efetivamente acontecesse. Séculos de experiência acumulada
permitiram ao brasileiro desenvolver um conhecimento profundo e preciso de qual
é, efetivamente, o ponto marginal da catástrofe.
Nós brasileiros
intuitivamente sabemos que, tal como os organismos vivos, as coletividades
possuem um equilíbrio interno que as compele à preservação. Instabilidades
externas ou disfunções internas, embora possam prejudicar o funcionamento
ótimo, muito raramente são graves o bastante para comprometer a própria
existência do sistema. Do mesmo modo que uma pessoa consegue sobreviver em
condições muito mais duras do que ela mesma imagina, as coletividades também
conseguem manter um equilíbrio interno em condições de muito maior precariedade
do que geralmente se supõe.
Esse ponto, embora possa
parecer de difícil compreensão de vista teórico, torna-se muito claro para quem
quer que possua um mínimo de experiência de trabalho com instituições
brasileiras, sejam elas públicas ou privadas. Quando se organiza um grande
evento, por exemplo, estabelece-se, já no momento inicial, que o ponto onde se
localiza o caos marginal – ou seja, o ponto a partir do qual qualquer
incremento de desordem ou preguiça extra desencadearia o colapso – está muito
aquém de onde uma equipe de canadenses ou de dinamarqueses suporia. O
fundamento dessa suposição é a nossa experiência acumulada com a realização de
empreendimentos que deram certo com muito pouco esforço por parte de seus
gestores.
Só isso já bastaria para
qualificar a Teoria da Ordem e Progresso como uma intuição administrativa
original. Porém o caráter único de nosso modelo só se manifesta nas etapas
subseqüentes da organização, por meio de um approach que apresenta
pontos de contato com a filosofia da linha ch’an do budismo, ou zen: zen
preocupação, ou zen estresse nenhum.
Via de regra, seis meses
antes do acontecimento planejado, mais ou menos na época em que o japonês
entregaria a coisa pronta, o brasileiro praticamente ainda não fez nada. Não
mandou nem os estudos preliminares de custos, ou sequer elaborou um cronograma.
Ainda há tempo o bastante – ele pensa – e não há por que esquentar a cabeça
agora com o problema. Como diz o ditado, nunca faça agora o que alguém pode
fazer por você depois.
À medida que o tempo passa, e
que se aproxima a data limite para entrega, a ameaça de um fracasso torna-se
mais concreta. O brasileiro, então, ainda não faz nada, porém ele internaliza o
problema, ou seja, ele toma consciência da necessidade de ter que fazer, mais
cedo ou mais tarde, alguma coisa. Ainda assim, não faz nada. A esperança é a
última que morre[2].
Passados mais alguns meses,
quando já se aproxima o instante que poderia ser chamado de ponto crítico da
preparação – ou o ponto do caos marginal – o brasileiro finalmente acorda. Não
há mais como adiar, o negócio vai ter que acontecer, de um jeito ou de outro,
então é preciso que alguém faça alguma coisa. A essa altura, o brasileiro toma
algumas medidas perfunctórias e estritamente formalistas ou, quando muito,
tenta transferir sua responsabilidade para outra pessoa – preferencialmente
alguém que esteja hierarquicamente abaixo dele.
Então acontece a verdadeira
mágica. Por pura falta de organização, o tempo passa e ultrapassa-se aquilo que
o próprio brasileiro havia suposto ser a data-limite para entregar os
resultados! Isso não por um insight consciente, mas por puro desleixo.
Agora, ele simplesmente vai ter que arrumar uma maneira de fazer a coisa
acontecer, seja lá como for.
Como se percebe, a filosofia da zen preocupação é
uma metodologia irracional que não contradiz, mas que na verdade complementa o
frio calculismo na base da Teoria da Ordem e Progresso. Ela permite ao
brasileiro concretizar seus planos com uma quantidade de esforço menor do que
ele mesmo havia antecipado! Num período de tempo incrivelmente curto
(incrivelmente mesmo, como todo bom brasileiro que já deixou para estudar todo
o assunto na véspera da prova sabe) tomam-se uma série de medidas paliativas e
emergenciais, fazem-se concessões, gasta-se mais do que o previsto, mas, no
final, a coisa acontece.
E a coisa acontece mesmo. O
Brasil não é um país falido. Nossas instituições funcionam, até muito bem,
considerando o nível de esforço que investimos nelas. Que a Copa do Mundo
esteja acontecendo, aos trancos e barrancos, não é acaso: é o coroamento de
nossa genialidade logística, que nos permitiu organizar um dos mais importantes
eventos esportivos mundiais sem que, para isso, tivéssemos que deixar de lado o
choppinho com os amigos!
E sequer importa que, desde
um ponto de vista financeiro, nossas obras custem muito mais caro do que
aquelas feitas por outros povos mais organizados: lembremos que no Brasil o bem
mais valioso é a vida humana ociosa, e que o ponto é fazer a coisa acontecer
não com o mínimo de dinheiro público, mas com o mínimo de esforço aborrecido. E
nesse aspecto eu posso garantir que somos um dos povos mais bem-sucedidos do
mundo.
Como poderíamos ser de outro
modo? Aqui ao nosso lado, a Argentina é a prova cabal de que a tentativa de
usar sem mediação métodos e critérios estritamente europeus numa realidade
latino-americana pode ter resultados catastróficos.
Chega de derrotismo,
portanto, brasileiros! Nós estamos certos: trabalhar é um saco. É o jeito, mas
não será por isso que a gente, de um jeito ou de outro, não dará um jeito.
Viva!
[1] Tendo vivido na Ásia do Leste por algum
tempo, eu definiria o “confucianismo” como a capacidade de confundir, ou de
provocar confusão.
[2] Pesa aqui, também, certa inclinação
schopenhaueriana de nossa teoria do conhecimento: para o brasileiro, só o
presente é real, já que o ponto de partida da experiência de mundo é o “eu”
tomador de caipirinhas.
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