
Em primeiro lugar, se aquilo em que
os cristãos acreditam é verdadeiro, Deus é onisciente. Não sei se todo fiel tem
uma idéia clara das implicações disso: significa que nenhum acontecimento – nem
mesmo o mais insignificante – escapa à mente do Criador. É uma idéia tremenda,
e seria terrivelmente opressora se a imagem desse Deus onisciente não estivesse
associada a Sua misteriosa capacidade de perdão. Dá até para entender a angústia de
Raul Seixas quando ele disse: “Eu estava com Deus, e eu tinha medo”[1].
O segundo ponto é que Deus é onipotente. Ou seja, Ele pode tudo. Pode até mesmo
criar uma pedra tão pesada que nem Ele é capaz de levantar, e ainda jogá-la
sobre a cabeça de um teólogo petulante. É a Sua vontade, por sinal, que
sustenta a realidade deste mundo, e se por um segundo Ele se desconcentrasse, o
universo inteiro voltaria ao pó de que foi criado.
Liguem os pontos. Imaginemos que um
Ser tão poderoso tenha inscrito na natureza deste mundo Sua idéia de Bem e de
Mal. Imaginemos, ademais, que nosso Criador, por alguma razão misteriosa,
alheia ao entendimento dos teólogos, tenha estabelecido preceitos extremamente
rigorosos sobre o comportamento sexual da espécie humana. Imaginemos, enfim,
que sodomia seja pecado.

Dito em termos bem simples, o
cristão militante é um completo imbecil – comparável, em termos de idiotia,
apenas a certas correntes do marxismo e do feminismo. A mensagem que Cristo
pregou é uma mensagem de radical ruptura: “o meu reino não é deste mundo”. Esta
vida é o campo de batalha do espírito. Aqui bons e maus têm a chance de provar em
que barco estarão quando o Dia da Ira chegar. Mas a promessa de que os apóstolos
falam não aconteceu: ela virá após a morte, para os mansos, para os piedosos,
para os que se mostrarem dignos de amar e de serem amados. Mais importante de tudo, a salvação é para
sempre. O que nos sucede após a morte, portanto, é incomparavelmente mais relevante
que aquilo que vivenciamos em nossas vidas. Que são os sofrimentos da carne
comparados à infinita beatitude que está por vir? Que são as injustiças
sofridas, os insultos e violências, comparados a uma eternidade na companhia da
gloriosa Mente que concebeu o mundo?
O cristão com o mínimo de compreensão sobre os preceitos de sua religião
sabe que se deve odiar o pecado amando o pecador. Pois é a capacidade de
perdoar que pode nos tornar merecedores do perdão divino. Talvez seja possível,
no máximo, tentar convidar o pecador a partilhar do destino em que os
cristãos acreditam, porém tentar forçar alguém a salvar-se é algo tão absurdo
que até os insultos me escapam!
Depois do açúcar refinado, uma das maiores fontes de males da humanidade é
a estupidez bem-intencionada. Como muitos de nós em breve devem descobrir, o
caminho para o inferno está ladrilhado com ótimas intenções. O cristianismo
paladino de nossos tempos, em suas cruzadas para privar as pessoas de meios com
que pecar, tem, como era de se prever, contribuído ainda mais para o retrocesso
político deste país.
Não se pode ser claro o bastante quanto a isso: não é papel do Estado
evitar que as pessoas sejam condenadas ao inferno. Apenas a convicção pessoal e
a experiência íntima do amor divino podem dar-nos uma chance, pequena como
seja, de salvação. Querer, portanto, impor curas gays, fazer campanhas contra o
sexo pré-marital (desestimulando o uso de preservativos) e militar
agressivamente contra a constituição civil de novas modalidades de família é um
atraso social e espiritual. Absurdo dos absurdos, por exemplo, é a insistência
de nossa sociedade em manter a prostituição desregulamentada, tornando possível
uma catástrofe de saúde pública cotidiana, que acontece bem debaixo de nossos
pios narizes! Não sou capaz de entender que amor é esse, que em nome de uma idéia
deturpada de cristianismo impede que as putas tenham direitos trabalhistas e
previdenciários mínimos, e que acha aceitável que os pecadores somem às misérias
que sofrerão após a morte todo tipo de calamidade sexualmente transmissível!

En passant, eu que tenho muitos
e grandes defeitos, não seria capaz de condenar homossexuais e putas às
torturas infernais; quem dirá Deus, que é infinita inteligência e infinito
amor.
[1] Com toda
certeza Deus via o que Raul estava fazendo no banheiro, assim como Ele vê
também o que você faz por lá.
[2] Um
parêntese, aqui, precisa ser feito no que concerne à agenda relacionada à legalização do aborto.
Essa complicada questão não diz respeito apenas a uma moralidade religiosa, mas
possui uma dimensão ética mundana, já que não está claro a partir de que
instante uma criatura viva torna-se merecedora de tutela jurídica. Não
deixemos, portanto, a idiotia de alguns grupos (os fundamentalistas religiosos,
por exemplo) obscurecerem outras idiotias tão agudas quanto (como a das
militantes de um “útero livre”).
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