segunda-feira, 22 de julho de 2013

Desenho Inteligente e Saltos Macroevolutivos





Ilustração do biólogo Ernst Haeckel.

 Eduardo Siebra, 09/01/2013
            Hoje pela manhã li uma palestra do astrônomo cristão Owen Gingerich e, ao me deparar com alguns argumentos sobre a teoria do Design Inteligente – de que o autor discorda – não consegui evitar a desconcertante sensação de que havia me deparado com um raciocínio pertinente, mas incompleto. No momento, porém, não consegui definir exatamente o que estava faltando. .
            Escrevo este texto, portanto, como desabafo, e também como maneira de dar forma às objeções que intuitivamente levantei durante minha leitura. Aos que o acharem exageradamente pretensioso, alego em minha defesa que o escrevi para mim mesmo.
            Mais que uma teoria científica, o Design Inteligente é um movimento intelectual ou político que se propõe a desafiar algumas das suposições materialistas do darwinismo.  De modo geral, eles acreditam que certas características do universo – especialmente características encontradas nos organismos vivos – não podem ser explicadas pelo jogo aleatório das probabilidades evolutivas. Nesse sentido, seu pensamento vai além do dos criacionistas cristãos tradicionais, já que ao invés de fundamentarem suas alegações numa interpretação literal das escrituras, eles usam evidências fornecidas pela própria ciência para justificar afirmações teológicas.
            Um exemplo interessante é o dos chamados saltos macroevolutivos. Vou tentar explicar a idéia nos termos mais simples que conseguir. Como se sabe, o darwinismo contemporâneo associa as descobertas da genética com a idéia de seleção natural para apresentar uma explicação sobre como os organismos complexos evoluíram. A idéia é simples e tem lá sua elegância: pequenas mutações ocorrem nos cromossomos dos seres vivos quando se formam os gametas. Boa parte dessas mutações são evolutivamente prejudiciais, já que elas provocam o aparecimento de problemas geneticamente transmissíveis – como algumas deformidades físicas – que diminuem a probabilidade do indivíduo de sobreviver e transmitir seus genes. Outras mutações podem ser consideradas positivas, pois elas representam melhoras qualitativas no patrimônio genético da espécie – como o aumento da capacidade cognitiva, o desenvolvimento de um órgão que aumente as chances de alimentação, etc. O indivíduo mutante portador desses incrementos está mais apto a sobreviver num ambiente em que tem de competir por recursos escassos, e isso aumenta sua probabilidade de reprodução.
            Um ponto muito enfatizado pelos darwinistas é o de que tanto as mutações como a seleção natural são aleatórias, ou seja, elas acontecem segundo as leis cegas da probabilidade. É como se os genes, por exemplo, fossem peças de um quebra-cabeça que se rearranjassem seguindo um padrão imprevisível. As peças, naturalmente, possuem encaixes específicos que só podem se juntar a contrapartes determinadas, porém o que define qual será a configuração final das peças depois da mutação é um processo caótico. Do mesmo modo, as espécies sobrevivem ou perecem segundo as leis da competição por recursos.
            Em minha opinião, a limitação do darwinismo reside não na idéia de seleção natural – conceito que possui amplo embasamento nas evidências – mas sim na explicação genética sobre as mutações. É aí que os adeptos do Design Inteligente concentram suas críticas, e eu arriscaria dizer que eles não estão de todo equivocados.
            O problema consiste no fato de as mutações aleatórias de que falamos – o rearranjar-se cego dos cromossomos – ser capaz de explicar apenas melhorias evolutivas marginais, ou seja, pequenos aperfeiçoamentos na carga genética do descendente (como no exemplo clássico do pescoço da girafa, que a cada nova geração fica mais comprido, permitindo o acesso à folhagem das árvores mais altas). Algumas inovações genéticas, porém, representam verdadeiros saltos qualitativos – e seria preciso forçar muito o princípio que estamos analisando para concluir que ele seria capaz de explicar satisfatoriamente tais fenômenos.
            Um exemplo simples de um desses saltos é o surgimento de um novo órgão de locomoção num microorganismo. O aparecimento de um flagelo que se movimenta de forma circular, por exemplo, apresenta um problema conceitual à teoria evolutiva. Suponhamos que as mutações aleatórias nos cromossomos fossem capazes de explicar o aparecimento de um filamento alongado no corpo de uma bactéria. Apenas isso seria insuficiente para assegurar uma vantagem evolutiva. Para tanto, seria possível que a mutação provocasse, ao mesmo tempo, o aparecimento do flagelo e a capacidade de movimentá-lo de forma circular[1].
            Uma série de incrementos marginais em diferentes gerações talvez pudesse explicar tais saltos – e o repetir-se do processo ao longo dos milênios seria capaz de explicar inovações tão fascinantes como o aparecimento de novos sentidos. Porém, o mistério reside no fato de que a vantagem comparativa do incremento só ficaria claro ao fim de todo esse processo evolutivo, depois de várias gerações de seleção natural. As gerações que fizessem parte do início da mudança – as que tivessem, por exemplo, um flagelo longo, porém que não fosse capaz de movimentos circulares – não teriam qualquer vantagem evolutiva em relação aos indivíduos que não possuíssem essa longa haste. Nada garante que eles teriam mais oportunidade de perpetuar seus genes.
             Que está errado com o relato evolucionista, então? Será que os adeptos o Design Inteligente possuem razão ao dizer que apenas a intervenção divina na história seria capaz de explicar certos aspectos da evolução das espécies? Ou será que o materialismo darwinista é suficiente para explicar o aparecimento de objetos tão complexos como o cérebro humano?
            Nem uma coisa nem outra, eu diria. O Design Inteligente comete uma simplificação falaciosa, que poderia ser expressa nos seguintes termos: “se a teoria da evolução não é capaz de explicar esse fenômeno, então somente a vontade Deus pode explicá-lo”. Essa é uma subversão da racionalidade científica, que se assenta muito mais sobre as dúvidas do que sobre as certezas. Os darwinistas, por seu lado, apegam-se a sua teoria com o furor de fanáticos, aproveitando-se, inclusive, da credibilidade de alguns de seus adeptos mais influentes para defender extrapolações disparatadas sobre o ateísmo – que não tem absolutamente nada a ver com o pensamento científico.
            Se eu fosse arriscar uma explicação para o impasse, diria que ele se deve ao fato de o debate estar assentado sobre pressupostos intelectuais esgotados. Explico-me.
             São as fascinantes possibilidades de combinações oferecidas pela química do carbono que tornam possível o aparecimento de moléculas tão complexas como as proteínas. O desenvolvimento dos organismos vivos aconteceu após longos períodos de interações entre moléculas orgânicas. A     questão é: será que apenas movimentos aleatórios entre peças que são capazes de se conectar são suficientes para explicar o surgimento da complexidade (tanto no caso do aparecimento da vida como no caso da evolução de organismos superiores)? O astrônomo e matemático inglês Fred Hoyle calculou que a probabilidade de uma proteína surgir, em um só passo, de uma “máquina aleatória de aminoácidos” seria infinitesimal (20−153 no caso da mioglobina).
            Não obstante, as proteínas existem! Seria um inacreditável acaso – tornado possível pela escala do tempo geológico? Ou será que existe algum componente da realidade que não estamos levando em consideração?  
            O matemático Nobert Wiener, pai da Teoria da Informação, observou que a realidade é composta não apenas por matéria e energia, mas também por informação. Ele observou que nenhum relato materialista do universo estaria completo sem levar em conta esse conceito.
            Ora, quais as implicações dessa afirmação para nossa maneira de interpretar o mundo? O que significa perceber que a própria matéria possui, em sua conformação ontológica, a possibilidade de sustentar a informação, ou seja, a aptidão a tornar-se complexa?
            Para escapar do dilema de ter que escolher entre a suposição de que Deus interfere todo o tempo na história natural (o que seria uma afirmação não-científica) e a presunção de que o que explica os problemas com que a biologia se depara é uma inacreditável coincidência (o que é metodologicamente desonesto), talvez devamos incorporar à nossa narrativa científica um novo vocabulário conceitual que leve em conta o problema de informação, que é, também, o problema da complexidade.
            Não serei eu que irei desenvolver esse novo vocabulário. Seriam necessários não apenas novos conceitos, mas mesmo uma nova matemática que fosse capaz de decifrar essa aptidão da matéria.  Ainda assim, atrevo-me a fazer a afirmação de que vivemos num universo informacional, ou seja, num universo capaz de complexidade. Embora a segunda lei da termodinâmica tenha mostrado que, quando tomado em sua totalidade, o cosmos tende a um amento irreversível do nível de desordem, dispêndios localizados de energia são capazes de criar aumentos de complexidade. Não se trata de um acaso: o aumento da informação, tanto no nível inorgânico como no nível biológico, é uma das tendências observáveis da matéria.
            Se o que eu disse é verdadeiro, não se trata só de uma questão de comprovação empírica, mas sim de uma mudança de postura intelectual face aos fatos (reluto em usar o termo “paradigma” por ter sido ele tão desgastado pelos cientistas sociais). Seria preciso mudar as teorias de modo a incorporar o elemento “informação” em seus modelos explicativos. A partir do instante em que passarmos a entender um aumento na complexidade como um aumento de informação de um sistema (aceitando a definição matemática de que o nível de informação de um sistema é o seu nível de ordem), então uma série de novas perguntas de pesquisa se tornarão possíveis. Ao invés de tentar apenas descobrir quais caminhos a matéria orgânica seguiu em sua evolução, será preciso compreender qualitativamente o que o registro informacional de um ser vivo gravado na matéria de que ele é composto tem a nos dizer (seu “design”, sua “programação”).
            O problema dos saltos macroevolutivos – que foi o que me motivou a escrever esse texto – precisaria ser reavaliado dentro desse novo entendimento da complexidade. Não precisaríamos apelar para a transcendência ao nos deparar com um problema que aparentemente desafia os pressupostos do evolucionismo, mas sim tentar entender qual dinâmica da matéria torna possível esses saltos – a emergência de estruturas altamente sofisticadas, com funções orgânicas bem definidas. Além disso, as evidências que justificam a suspeita de que alguma medida de antecipação está implícita nos saltos evolutivos talvez nos levasse a reconsiderar o papel da causa final aristotélica na biologia[2]. O que não é admissível é tentar abordar um problema complexo a partir de uma perspectiva mecanicista tacanha, que imagina a interação das moléculas e das células como o entrechocar-se de bolas de bilhar ou de pecinhas do jogo “Lego”.
Quero enfatizar que a suposição que levantei no parágrafo anterior é estritamente científica. Constatar que vivemos num universo informacional não nos permite fazer nenhuma inferência a respeito da existência ou não de Deus. O erro dos defensores do Design Inteligente reside na confusão de problemas físicos com problemas metafísicos: ao se deparar com as limitações de uma teoria, eles apelam para a transcendência, a mão invisível do Criador que a todo instante interfere no mundo em que vivemos. Como se um Deus onipotente e onisciente não pudesse ter, desde o princípio, inscrito em sua obra leis ou regularidades que se bastariam para fazer um mundo tão fascinante como o nosso funcionar sem a Sua intervenção!
Além disso, o fato de um universo como o nosso existir – um que possui constantes cosmológicas tão estreitamente compatíveis com a vida, um que permite a química do carbono, e o aparecimento da consciência, da arte e do amor – não é nem prova nem negação da existência de um Deus como Aquele em que acreditam os cristãos. Explicações metafísicas alternativas – como a idéia expressa pelo princípio antrópico de que existem inúmeros multiversos, maior parte dos quais é incompatível com a vida; ou a noção budista de que a realidade é um sonho, uma instabilidade no vazio – são tão verossímeis quanto a versão aceita pelas religiões judaico-cristãs, já que nenhuma dessas suposições é passível de comprovação empírica. Voltamos ao ponto de partida de nossos ancestrais, e sentimo-nos obrigados a reconhecer que, possivelmente, os únicos caminhos para o conhecimento das verdades teológicas são a fé, a revelação e a contemplação.  
O pecado dos darwinistas e dos geneticistas é o de confundir verdades provisórias alcançadas por suas teorias com um conhecimento definitivo a respeito da realidade. Na verdade, o pensamento científico moderno tem um estatuto epistêmico precário por definição. Toda generalização é provisória, já que qualquer nova evidência pode lançar por terra antigas convicções, e justo por isso a dúvida metódica é muito mais importante (ao menos no nível intelectual) do que a solidez das conclusões.
Nossa espécie é intrigante e intrigada: um pequeno reduto de consciência num universo gigantesco e fascinante, que se nos apresenta como enigma. O pensamento científico é um dos mais valiosos instrumentos que possuímos em nossa busca pelo conhecimento. É por isso que não devemos nem abandoná-lo quando ele se choca com nossas crenças religiosas (como fazem os advogados do Design Inteligente) nem permitir que a ciência se transforme numa ideologia. As duas possibilidades nos diminuem enquanto seres pensantes.  


[1] O exemplo é de Owen Gingerich.
[2] Por exemplo, seria possível afirmar, cientificamente, que o flagelo do microorganismo do exemplo que citei evoluiu para que aquele organismo pudesse se locomover melhor?

2 comentários:

  1. Depois de tanto jactar-me com excessos de darwinismo, cheguei, por uma estranha coincidência, a essa mesma conclusão há poucos dias.
    O método experimental, por si só, não pode mesmo propor uma teoria de tudo. A ontologia sempre lhe escapa. Acho que é mesmo o momento da nova aliança entre a filosofia e o incrível progresso técnico.
    Eu, nas minhas heresias, fico imaginado que esse Deus -ingerente ou não- possa ser o Deus que coube aos humanos. Numa esfera inacessível, pode haver um Deus para cada sistema vivente.
    Só um comentário sobre o "instituto da revelação": só pode ter havido duas possibilidades
    1-houve, de fato, uma revelação original. Posteriormente, alguns espertinhos se deram conta do filão e forjaram as suas;
    2- nunca houve. Nesse caso, fica consagrada a estonteante imaginação humana, independente de causas inteligentes ou aleatórias!
    P.S. : texto sensacional!

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  2. Que haja um universo é absurdo. Benditos sejamos nós, os vivos.

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