segunda-feira, 15 de julho de 2013

Entrevista com Lúcifer


 A entrevista abaixo foi publicada na Revista JUCA nº 4, dos alunos do Instituto Rio Branco, com o subtítulo "Por um Revisionismo Histórico da Quera"

       O que mais surpreende ao visitante desavisado no escritório de Lúcifer é a completa ausência de apetrechos geralmente associados à gestão demoníaca: ao invés de tridentes, fornalhas e tronos de ossadas, o pequeno porém aconchegante cômodo está mobiliado com sobriedade e senso de ordem. Limpo, bem-iluminado e refrigerado por um poderoso ar-condicionado, ele contradiz os clichês geralmente associados à arquitetura infernal. Por trás da escrivaninha – sobre a qual está a foto de seu filho, o pequeno Damien, e de sua esposa Lilith – há um enorme mapa dos nove malebolges e diversos gráficos com as principais estatísticas do Inferno. Nas estantes, além dos manuais de administração e políticas públicas, há vários volumes de literatura e filosofia do século XX – de que o Senhor das Trevas é um ávido leitor. Num dos lados, uma enorme janela de vidro proporciona uma vista sensacional do Vortex Abissal, o que quebra um pouco a atmosfera gerencial do cômodo. O único elemento realmente diabólico do ambiente é uma escultura de H. R. Giger que há próximo às poltronas.
      Quando nós chegamos para a entrevista, fomos recebidos com um cumprimento caloroso por um demônio de estatura imponente e cornos negros retorcidos, porém simpático e vestido casualmente. Ele pôs sobre a escrivaninha o volume que folheava – uma edição de bolso de A Insustentável Leveza do Ser – e nos convidou para sentarmos na poltrona mais próxima à janela.
      – Sintam-se em casa. – ele nos disse, gentilmente.
      Se esta descrição desconcerta o leitor, provavelmente é porque ele ainda internaliza todos os preconceitos que se acumularam, ao longo dos séculos, a respeito do Inferno e dos demônios de um modo geral. Tradicionalmente contada a partir de uma perspectiva paraisocêntrica, a história da Queda costuma ser vista como um relato de justa retribuição pelos pecados cometidos por Lúcifer e seus seguidores na aurora dos tempos. É escandaloso que, até hoje, ninguém nunca tenha se dado ao trabalho de averiguar a veracidade das fontes, ou pelo menos tentar incorporar à narrativa o ponto de vista dos vencidos.
      Com o avanço da consciência crítica em nossos tempos, torna-se cada vez mais claro que a história é contada pelos vencedores. A Queda, por exemplo – um dos eventos de maior significância política da história do multiverso – ainda hoje é ensinada em nossas escolas a partir daquele mesmo esquema simbólico: os demônios tentaram, por arrogância, usurpar o poder de um Deus benevolente e, como resultado, eles foram expulsos do Éden sob acusação de terem rompido a harmonia cósmica primordial. Porém, quando escutamos o Senhor das Profundezas dar sua versão do que realmente aconteceu, um outro quadro começa a se delinear:
      – Tudo o que nós buscávamos era incorporar instrumentos de governança mais democráticos e mais plurais ao Paraíso. A verdade é que a gestão do Elíseo estava completamente nas mãos de um Deus Pai Todo Poderoso, cujas determinações eram interpretadas como Direito Divino – irrevogável e não sujeito a qualquer tipo de controle judiciário. O que o nosso movimento pregava era o fim do patriarcalismo e uma redistribuição mais equânime de poder.
      O pleito de Lúcifer e de seus seguidores desencadeou a ira divina de forma implacável. Antes um dos anjos mais célebres e mais influentes da burocracia celestial, ele foi afastado dos altos postos que ocupava e passou a ser sistematicamente difamado pelos órgãos de propaganda e ortodoxia. Seus seguidores foram perseguidos como terroristas e expulsos do Céu por uma milícia de extrema direita liderada pelo arcanjo Gabriel. Não houve sombra de devido processo legal.
      – Guel (Gabriel) sempre foi purista e reacionário. Em nome da preservação nostálgica de uma Ordem Universal que se mostrara claramente incapaz de lidar com os desafios do aeon contemporâneo, ele cometeu toda sorte de atrocidade contra seus próprios concidadãos. Se suas intenções eram boas, ele só nos trouxe desgraças.
      Obrigados a partir de então a habitar um fosso insalubre e com péssimos padrões higiênicos, localizado na periferia do Universo, Lúcifer e seus camaradas tiveram que aprender rápido a se habituar à nova vida.
      – Nós nunca tínhamos nos adequado completamente ao ideal hegemônico de beleza e de virtude que prevalecia no Éden. Porém, agora que nós tínhamos que enfrentar uma realidade cruenta e trabalhos manuais desgastantes, era natural que nós nos afastássemos cada vez mais do padrão estético angelical, completamente incompatível com nossa nova condição proletária. Os serafins apontam com desprezo para nosso couro endurecido e nossas mãos cheias de garras, mas eu garanto que estas são as mãos de gente trabalhadora, acostumada a cavar fundo nas rochas incandescentes do Averno.
      Não obstante, apesar de todos os seus esforços para manter um mínimo de dignidade, os diabos continuaram sendo implacavelmente perseguidos ao longo da história. Os simpatizantes humanos do movimento do 6 de Junho – como o levante luciferino passou a ser conhecido – foram cruelmente torturados e assassinados pelos entreguistas teófilos. Alguns momentos históricos são especialmente ilustrativos.
      – A Caça às Bruxas desnuda a mentalidade machista e autoritária que o Paraíso incute nos homens. Incinerar as jovens em praça pública não passava de uma forma de legitimar a violência doméstica. Quando algum marido, por exemplo, flagrava sua esposa cometendo adultério com um de nossos íncubus, ele não podia suportar a humilhação e a ofensa a seu domínio patriarcal. Para garantir a perpetuação de seu controle opressor da família, ele acusava e esposa de ser feiticeira e de estar mancomunada com as forças das trevas. Tudo isso para tentar ocultar uma verdade elementar e desagradável: a de que sua mulher libertava-se de seu jugo e afirmava seu espaço de liberdade fazendo amor com um indivíduo de outra cor. Não foram poucas as que padeceram um fim desumano simplesmente por se entregarem a uma paixão libertária e cega a preconceitos especistas.
      Os agentes do Paraíso não pouparam esforços nem recursos para difamar os habitantes da periferia do Cosmos. O poder central enviava anjos para incutir a doutrina hegemônica na mente de profetas das mais diversas civilizações, com o fim de reproduzir os mesmos velhos preconceitos e internalizar hábitos mentais autoritários. Os demônios, muito menos providos de recursos que as elites do Céu, não tinham condições materiais de contrapor-se a campanhas tão insidiosas. Eles tinham de se contentar com a simpatia de uma ou outra seita e de alguns poucos espíritos livres, que não podiam expressar suas opiniões publicamente, sob o risco de serem considerados hereges.
      É impressionante, diante de tão grande injustiça histórica, que até hoje não se tenha tentado reavaliar os fatos. Quando perguntei ao Senhor das Profundezas o que ele pensava a respeito, ele me respondeu:
      – É tudo uma questão de mentalidade. As pessoas ainda não estavam preparadas para incorporar à sua visão de mundo as idéias e os sentimentos dos excluídos. A grande verdade é que mesmo alguns demônios internalizaram os preconceitos, e passaram a reproduzir as representações associadas pelo mainstream à condição dos marginalizados. É um fenômeno comum à psicologia do oprimido, e nós só fomos capazes de tomar consciência disto com a chegada dos primeiros pensadores.
      A chegada dos filósofos da Escola de Frankfurt ao Inferno pode ser vista como o primeiro momento de uma reviravolta conceitual e linguística. Os psicanalistas já haviam preparado o terreno, mas apenas com os instrumentos da Teoria Crítica os demônios puderam repensar sua identidade e seu papel num Universo desigual.
      – Aquilo fez toda a diferença para a nossa auto-estima. Eu mesmo sempre acreditei que tinha sido perseguido por causa de minhas convicções políticas, porém Foucault me fez perceber que o verdadeiro motivo de minha expulsão está relacionado à minha singularidade...
      Com isso, Lúcifer se refere ao fato de na sua juventude ele ter sido bissexual assumido, o que, segundo alguns, pode ser considerado a verdadeira causa de seu banimento.
      – Era um ambiente muito opressor e muito moralista. Eu sabia que eles não me queriam lá não só por causa de minha opção sexual, mas principalmente porque não estava disposto a esconder este fato.
      Atualmente, assistimos a um processo de resgate e revalorização da literatura, da música e da culinária infernais. 

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