A entrevista abaixo foi publicada na Revista JUCA nº 4, dos alunos do Instituto Rio Branco, com o subtítulo "Por um Revisionismo Histórico da Quera"
O que mais surpreende ao visitante desavisado no escritório
de Lúcifer é a completa ausência de apetrechos geralmente associados à gestão
demoníaca: ao invés de tridentes, fornalhas e tronos de ossadas, o pequeno
porém aconchegante cômodo está mobiliado com sobriedade e senso de ordem.
Limpo, bem-iluminado e refrigerado por um poderoso ar-condicionado, ele
contradiz os clichês geralmente associados à arquitetura infernal. Por trás da
escrivaninha – sobre a qual está a foto de seu filho, o pequeno Damien, e de
sua esposa Lilith – há um enorme mapa dos nove malebolges e diversos gráficos
com as principais estatísticas do Inferno. Nas estantes, além dos manuais de
administração e políticas públicas, há vários volumes de literatura e filosofia
do século XX – de que o Senhor das Trevas é um ávido leitor. Num dos lados, uma
enorme janela de vidro proporciona uma vista sensacional do Vortex Abissal, o
que quebra um pouco a atmosfera gerencial do cômodo. O único elemento realmente
diabólico do ambiente é uma escultura de H. R. Giger que há próximo às
poltronas.
Quando nós
chegamos para a entrevista, fomos recebidos com um cumprimento caloroso por um
demônio de estatura imponente e cornos negros retorcidos, porém simpático e
vestido casualmente. Ele pôs sobre a escrivaninha o volume que folheava – uma
edição de bolso de A Insustentável Leveza do Ser – e nos convidou para
sentarmos na poltrona mais próxima à janela.
– Sintam-se em
casa. – ele nos disse, gentilmente.
Se esta descrição
desconcerta o leitor, provavelmente é porque ele ainda internaliza todos os
preconceitos que se acumularam, ao longo dos séculos, a respeito do Inferno e
dos demônios de um modo geral. Tradicionalmente contada a partir de uma
perspectiva paraisocêntrica, a história da Queda costuma ser vista como um
relato de justa retribuição pelos pecados cometidos por Lúcifer e seus
seguidores na aurora dos tempos. É escandaloso que, até hoje, ninguém nunca
tenha se dado ao trabalho de averiguar a veracidade das fontes, ou pelo menos
tentar incorporar à narrativa o ponto de vista dos vencidos.
Com o avanço da
consciência crítica em nossos tempos, torna-se cada vez mais claro que a
história é contada pelos vencedores. A Queda, por exemplo – um dos eventos de
maior significância política da história do multiverso – ainda hoje é ensinada
em nossas escolas a partir daquele mesmo esquema simbólico: os demônios
tentaram, por arrogância, usurpar o poder de um Deus benevolente e, como
resultado, eles foram expulsos do Éden sob acusação de terem rompido a harmonia
cósmica primordial. Porém, quando escutamos o Senhor das Profundezas dar sua
versão do que realmente aconteceu, um outro quadro começa a se delinear:
– Tudo o que nós
buscávamos era incorporar instrumentos de governança mais democráticos e mais
plurais ao Paraíso. A verdade é que a gestão do Elíseo estava completamente nas
mãos de um Deus Pai Todo Poderoso, cujas determinações eram interpretadas como
Direito Divino – irrevogável e não sujeito a qualquer tipo de controle
judiciário. O que o nosso movimento pregava era o fim do patriarcalismo e uma redistribuição
mais equânime de poder.
O pleito de
Lúcifer e de seus seguidores desencadeou a ira divina de forma implacável.
Antes um dos anjos mais célebres e mais influentes da burocracia celestial, ele
foi afastado dos altos postos que ocupava e passou a ser sistematicamente
difamado pelos órgãos de propaganda e ortodoxia. Seus seguidores foram
perseguidos como terroristas e expulsos do Céu por uma milícia de extrema
direita liderada pelo arcanjo Gabriel. Não houve sombra de devido processo
legal.
– Guel (Gabriel)
sempre foi purista e reacionário. Em nome da preservação nostálgica de uma
Ordem Universal que se mostrara claramente incapaz de lidar com os desafios do
aeon contemporâneo, ele cometeu toda sorte de atrocidade contra seus próprios
concidadãos. Se suas intenções eram boas, ele só nos trouxe desgraças.
Obrigados a
partir de então a habitar um fosso insalubre e com péssimos padrões higiênicos,
localizado na periferia do Universo, Lúcifer e seus camaradas tiveram que
aprender rápido a se habituar à nova vida.
– Nós nunca
tínhamos nos adequado completamente ao ideal hegemônico de beleza e de virtude
que prevalecia no Éden. Porém, agora que nós tínhamos que enfrentar uma
realidade cruenta e trabalhos manuais desgastantes, era natural que nós nos afastássemos
cada vez mais do padrão estético angelical, completamente incompatível com
nossa nova condição proletária. Os serafins apontam com desprezo para nosso
couro endurecido e nossas mãos cheias de garras, mas eu garanto que estas são
as mãos de gente trabalhadora, acostumada a cavar fundo nas rochas
incandescentes do Averno.
Não obstante,
apesar de todos os seus esforços para manter um mínimo de dignidade, os diabos
continuaram sendo implacavelmente perseguidos ao longo da história. Os
simpatizantes humanos do movimento do 6 de Junho – como o levante luciferino
passou a ser conhecido – foram cruelmente torturados e assassinados pelos
entreguistas teófilos. Alguns momentos históricos são especialmente
ilustrativos.
– A Caça às
Bruxas desnuda a mentalidade machista e autoritária que o Paraíso incute nos
homens. Incinerar as jovens em praça pública não passava de uma forma de
legitimar a violência doméstica. Quando algum marido, por exemplo, flagrava sua
esposa cometendo adultério com um de nossos íncubus, ele não podia suportar a
humilhação e a ofensa a seu domínio patriarcal. Para garantir a perpetuação de
seu controle opressor da família, ele acusava e esposa de ser feiticeira e de
estar mancomunada com as forças das trevas. Tudo isso para tentar ocultar uma
verdade elementar e desagradável: a de que sua mulher libertava-se de seu jugo
e afirmava seu espaço de liberdade fazendo amor com um indivíduo de outra cor.
Não foram poucas as que padeceram um fim desumano simplesmente por se
entregarem a uma paixão libertária e cega a preconceitos especistas.
Os agentes do
Paraíso não pouparam esforços nem recursos para difamar os habitantes da
periferia do Cosmos. O poder central enviava anjos para incutir a doutrina
hegemônica na mente de profetas das mais diversas civilizações, com o fim de
reproduzir os mesmos velhos preconceitos e internalizar hábitos mentais
autoritários. Os demônios, muito menos providos de recursos que as elites do
Céu, não tinham condições materiais de contrapor-se a campanhas tão insidiosas.
Eles tinham de se contentar com a simpatia de uma ou outra seita e de alguns
poucos espíritos livres, que não podiam expressar suas opiniões publicamente,
sob o risco de serem considerados hereges.
É impressionante,
diante de tão grande injustiça histórica, que até hoje não se tenha tentado
reavaliar os fatos. Quando perguntei ao Senhor das Profundezas o que ele
pensava a respeito, ele me respondeu:
– É tudo uma
questão de mentalidade. As pessoas ainda não estavam preparadas para incorporar
à sua visão de mundo as idéias e os sentimentos dos excluídos. A grande verdade
é que mesmo alguns demônios internalizaram os preconceitos, e passaram a
reproduzir as representações associadas pelo mainstream à condição dos marginalizados. É um fenômeno comum à psicologia
do oprimido, e nós só fomos capazes de tomar consciência disto com a chegada
dos primeiros pensadores.
A chegada dos
filósofos da Escola de Frankfurt ao Inferno pode ser vista como o primeiro
momento de uma reviravolta conceitual e linguística. Os psicanalistas já haviam
preparado o terreno, mas apenas com os instrumentos da Teoria Crítica os
demônios puderam repensar sua identidade e seu papel num Universo desigual.
– Aquilo fez toda
a diferença para a nossa auto-estima. Eu mesmo sempre acreditei que tinha sido
perseguido por causa de minhas convicções políticas, porém Foucault me fez
perceber que o verdadeiro motivo de minha expulsão está relacionado à minha
singularidade...
Com isso, Lúcifer
se refere ao fato de na sua juventude ele ter sido bissexual assumido, o que,
segundo alguns, pode ser considerado a verdadeira causa de seu banimento.
– Era um ambiente
muito opressor e muito moralista. Eu sabia que eles não me queriam lá não só
por causa de minha opção sexual, mas principalmente porque não estava disposto
a esconder este fato.
Atualmente,
assistimos a um processo de resgate e revalorização da literatura, da música e
da culinária infernais.
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