1990. O ano em que entendi do que a
escola realmente se tratava. Até então não ligava de ter que passar algumas
horas de meu dia na Casinha da Cultura. Foi lá que conheci alguns bons amigos,
com quem costumava desenhar monstros e explorar o jardim, sob o inacreditável
azul do céu cratense. As refeições comunais – ou “hora da meranda”, como,
naqueles anos idos, nós as chamávamos – eram momentos de alegria e
confraternização, quando podíamos trocar impressões sobre esse ensolarado universo
em que havíamos acabado de chegar. Eu gostava do pão com ovo, da banana frita,
do suco de caju em
caixinha. Sobretudo, ainda acreditava que a “Tia” fosse nossa
aliada.
Então veio o ABC. Então veio a
caligrafia. Vou ser honesto, nunca tive muita dificuldade de aprender as
letrinhas. Ficava até surpreendido com a desolação de alguns colegas, que
penavam para passar do "E". Mas esse não era o ponto. A Tia dava os primeiros
indícios de estar a serviço de um desígnio secreto que os adultos tinham bolado
para nós, e que nós com certeza teríamos abominado caso ele nos
tivesse sido esmiuçado em detalhes.
Perder os melhores anos estudando
álgebra, tornar-se um cidadão respeitável, ter que todas as manhãs enlaçar o
pescoço com uma tira de seda que nos apertará a goela o dia inteiro? Enquanto o
mundo estava – como nós, assíduos espectadores de Jaspion, sabíamos muito bem –
cheio de monstros e dinossauros? Longe de nós, com sua cara redondinha,
tracinho para lá. Você não é nossa amiguinha, você quer é lascar-nos a vida!
Escapar era preciso. Sabe lá Deus
que rotina enfadonha o futuro me guardava. Aos 6 anos, eu ainda tinha uma
chance.
6:00 hs da manhã. Levantei-me mais
cedo e vi que meu irmão ainda dormia. Eu não tinha um segundo a perder. Desci
do beliche e vi, pelas frestas da janela, que estava uma linda e quente manhã
do inverno sertanejo. Os passarinhos cantavam feito doidos, felizes de não
partilharem as misérias humanas.
Meus pais acordavam cedo, por isso
todo cuidado era pouco. Ainda de pijama, vi pelo corredor que a porta do quarto
deles estava fechada. Bom sinal, talvez eles ainda estivessem se arrumando para
ir ao trabalho. Desci correndo as escadas e, seguindo o estratagema que havia
mentalmente ensaiado até altas horas da noite anterior (até umas nove horas,
imagino), fui até a copa, arrastei cuidadosamente uma cadeira até a parede e
roubei o relógio.
Tomando cuidado para não ser visto,
abri a porta da frente, cumprimentei os cachorros – velhos companheiros, que
com um olhar de cumplicidade e uma lambida asseguraram-me que meu segredo
estava em boas patas – destranquei o portão e ganhei o mundo.
Livre! Lembro que senti uma
excitação correr-me o corpo todo quando me vi só na rua. Estava uma manhã
linda, com o sol brilhando forte no verde dos pés de oiti. Na imensidão azul
que pairava sobre minha cabeça, só uma ou outra nuvem bem branca, como algodões
ou sonhos num sono infantil. Doía-me um pouco pensar que eu tinha deixado para
trás os confortos do lar. Mas eu não tinha opção, eu não agüentava mais aquela
chatice em que a escola se havia tornado. Jamais considerei que o alfabeto
pudesse me ensinar algo mais relevante do que o que eu intuitivamente já tinha
aprendido – que o bom mesmo nessa vida é jogar pedra na lua e correr
desembestado sob do sol. Sim, eu viveria sem bolachas de chocolate e danoninho,
se esse fosse o preço a pagar pela liberdade.
Continuei caminhando despreocupado
pela rua de calçamento, esforçando-me para não chamar a atenção. Não teria me
passado pela cabeça que alguém poderia desconfiar de uma criança de seis anos
branca e loira, de pijama e sandália japonesa, caminhando sozinha pelas ruas do
bairro do Sossego com um relógio de parede debaixo do braço. Meu plano parecia-me
infalível. Iria pelas ruas de pedra até a entrada de uma trilha que eu havia
descoberto com meu companheiro de explorações, Ulissinho[1].
Por ela eu avançaria até as margens do Rio Granjeiro, no meio do qual está
situado o mais intrigante monumento geológico jamais descoberto por habitante
do Sossego: a temível “Pedra com Cara”, um gigantesco pedregulho com olhos,
boca e nariz – provavelmente obra de alienígenas ou homúnculos do subterrâneo,
ao menos segundo as teorias que eu e Ulissinho desenvolvêramos após rigorosas
investigações.
Sentado em cima da rocha, eu usaria
o relógio de parede para saber exatamente a hora em que meu pai iria trabalhar.A
vantagem de ter um pai obstetra é que as mulheres não adiam a hora do parto
simplesmente porque o filho do médico pôs na cabeça que não iria para a escola
naquele dia. Também não achava que ele fosse atribuir exagerada importância ao
meu desaparecimento, já que tinha indícios para acreditar que os adultos tinham
coisas mais importantes com que se preocupar. Eu estava seguro, portanto, que
no mais tardar às sete e meia meu pai já teria ido ao Hospital.
Chegada a fatídica hora, eu
retornaria do meu refúgio fluvial e voltaria para casa. Vestiria uma roupa
decente e tentaria achar algum dinheiro. Mesmo que não conseguisse encontrar,
meu destino era certo. Iria para o último reduto das crianças desgarradas e sem
futuro, o porto seguro dos desocupados, onde podíamos, em troca de alguns
cruzeiros, ser indulgentes com nossos vícios e desfiar as horas com
divertimentos jamais sonhados em sala de aula: a Center Games.
Era a época do Mega Drive e Sonic
tinha acabado de ser lançado – pelo menos no Crato. Eu planejava passar horas,
dias inteiros jogando e assistindo as partidas de outros viciados. Enquanto
meus colegas de escola labutavam no caderno de caligrafia, eu estaria
tranquilamente colecionando argolas e ajudando os animais da floresta a escapar
da vilania do Dr. Willy.
Sim faria isso e muito mais com os
outros habitués daquele antro de
permissividade – como um certo sujeito chamado Gasolina, que sempre estava por
lá, mesmo sem ter um tostão para pagar uma partida – e pouco estaria me lixando
se um meteoro varresse do mapa a Casinha da Cultura! Às favas com o ABC e com
as sopas de letrinhas!
Eu poderia ter sido livre. Talvez
hoje eu fosse um habitante das ruas e das florestas, com longos cabelos
desgrenhados e uma temível barba, e teria por companheiros apenas os mocós e os
passarinhos. Viveria da coleta de frutos silvestres, e usaria o pouco dinheiro
que conseguisse obter vendendo caroços de macaúba na feira do Crato para jogar
vídeo-game na Center Games – que ainda hoje existe, num novo endereço. E eu
seria livre, não teria que usar gravata, nem carregaria sobre os ombros o peso
de um terno. Sim, poderia ter sido a minha vida, se logo depois que eu dei a
volta na segunda esquina uma pampa não tivesse aparecido no meu encalço. Era o
meu pai, que ao ter se dado conta do sumiço do relógio de parede, percebeu que
alguma coisa devia estar errada.
Cá estou hoje, engravatado.
***
Ah, Ulissinho, o que é de nós?
Estará a Pedra com Cara ainda no leito do Rio Granjeiro, ou já terá alguma
enchente a carregado para longe, do mesmo modo que a vida carrega os
sonhos? Meu caro amigo, a verdade é que o sol nunca deixou de brilhar durante
as horas que nós passamos enfurnados em salas de aula, escritórios e
consultórios.
[1] Cabe,
aqui, observar que as crianças de antigamente eram criadas soltas pelo mundo
afora não porque o mundo fosse menos perigoso. Naquela época havia tantos
delinqüentes, assassinos e psicopatas como hoje, e ainda havia o agravante de
naqueles tempos as matas estarem infestadas de todo tipo de caipora, papa-figo
e assombração. Acontece que as crianças simplesmente eram mais intrépidas que as de
hoje, que se traumatizam com formas bullyings que, em nossos tempos, eram
interpretadas quase como manifestações de apreço.
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