Eduardo
Siebra, 19/03/2014
John
Gray está certo: não há evidências empíricas que nos permitam estabelecer uma
separação essencial entre homens e animais. O humanismo secular é um mito
antropocêntrico, que só se sustenta por não termos conseguido desenvolver nada
mais convincente para fundamentar nossas narrativas políticas e jurídicas.
Vivemos
numa sociedade que considera aceitável confinar animais em espaços minúsculos
para os engordar, matar e depois os transformar em alimentos. Também achamos
aceitável – em alguns casos – submeter animais a pesquisas científicas que lhes
provocam terríveis dores, sob a alegação de que isso é imprescindível ao avanço
da ciência. Todavia, a consciência de nossos tempos – ao menos a consciência do
mundo ocidental – consideraria uma violação de valores fundamentais submeter
seres humanos a tratamentos similares.
Por
que o sofrimento animal é aceitável e o humano não? Supostamente, em razão
daquilo que nas declarações de direitos comumente se chama de
"dignidade da pessoa humana". Mas qual o fundamento desse conceito?
Nós costumamos aceitá-lo com muita naturalidade, quase como se fosse algo
óbvio, porém se tentamos justificá-lo filosoficamente, encontramo-nos em sérios
apuros.
Boa
parte dos argumentos utilizados para separar ontologicamente homens de
animais encontra sua refutação nas evidências empíricas. Por exemplo, durante
muito tempo se acreditou – em parte por causa da influência do pensamento
cartesiano – que os animais eram uma espécie de "maquinismos
divinos", ou seja, um tipo de autônomo criado por Deus para atender às
nossas necessidades, mas que na verdade não possui memória e não sente o
sofrimento da mesma forma que nós.
Os
estudos sobre a cognição animal apresentam evidências cada vez mais fortes
de quão absurda é essa suposição. Muitas de nossas capacidades cognitivas são
compartilhadas pelos mamíferos superiores – inclusive no que diz respeito à
posse da linguagem. Várias espécies possuem sistemas próprios de comunicação
por gestos e sons, e já são célebres os experimentos que ensinam linguagem dos
sinais para chimpanzés e gorilas. Não há mais dúvida sequer sobre a capacidade
dos grandes primatas de desenvolver alguma capacidade de abstração (como, por
exemplo, uma noção de individualidade, que se prova pela aptidão de reconhecer
o próprio reflexo num espelho).
Talvez
alguém pudesse tentar responder a essa objeção dizendo: "tudo bem, os animais
são capazes de certa dose de senciência. Porém eles não desenvolveram nossa
capacidade de criar instrumentos." Tal alegação poderia ser levada a sério
não fosse a escandalosa evidência dos homens de Neandertal.
Entenda-se:
os homens de Neandertal não são homens. Eles provieram de outro ramo evolutivo,
e constituem uma espécie distinta da nossa. Apesar disso, desenvolveram não
apenas os rudimentos de uma linguagem, como também demonstraram uma ampla
capacidade de manuseio de instrumentos. Apesar de já se
especular hoje sobre se houve inter-cruzamento entre os homens de Neandertal e
os nossos ancestrais, eles, enquanto espécie, foram extintos.
Ou
seja, já existiu nesse planeta outra espécie que compartilhava uma série de
atributos que por muito tempo nós consideramos exclusivamente humanos. O que
isso quer dizer? Que é um erro tentar estabelecer distinções fundamentais entre
nós e os demais seres-vivos com alegações empíricas. É claro, sempre podemos
escolher novas características para tentar definir o que é essencial à
humanidade e que nos separa do resto das criaturas, porém essa será sempre uma
escolha arbitrária.
Por
exemplo, poderíamos definir que aquilo que torna os homens mais dignos que as
demais espécies é a capacidade de usar a linguagem escrita. De fato, até o
momento não se descobriu nenhuma espécie que tenha desenvolvido uma capacidade similar.
Porém a principal fraqueza dessa forma de pensar não é nem sua aptidão a ser
refutada por uma evidência posterior (ou seja, se algum dia descobríssemos
vestígios fósseis que comprovassem que outra espécie de primata desenvolveu uma
linguagem escrita, o argumento estaria refutado) mas sim o fato desse argumento
sustentar-se num erro filosófico clássico: o de tentar extrair normas de fatos,
ou, para usar a linguagem kantiana, o de tentar basear o dever-ser no ser.
O
mundo da moral é um mundo muito particular, que está mais preocupado em julgar
comportamentos segundo uma hierarquia de valores do que em fazer juízos empíricos.
Não importa quantas asneiras os juristas possam dizer a respeito: as
normas são convicções subjetivas (ou seja, mentais), porém coletivamente
compartilhadas. Ou seja, embora a moral seja capaz de desenvolver uma ideia a
respeito de como o mundo deveria ser, e embora a experiência de mundo
definitivamente influencie o desenvolvimento da moral, os valores não são
escravos dos fatos. São pensamentos, e nada mais – e não incorramos na
ingenuidade de supor que pensamentos sejam pouca coisa.
Talvez
essa fosse até uma boa maneira de definir o que é especificamente humano: somos
capazes do conhecimento do bem e do mal. Porém, ainda que esse argumento seja
sedutor, ele tem o grave defeito de estabelecer a restrição de que só é humano
quem possui esse conhecimento (o que no fundo é o mesmo erro de tentar
fundamentar os valores em constatações empíricas). Por exemplo, os fetos ou as
crianças recém-nascidas, por ainda não possuírem a capacidade moral, não são
humanas? Poderíamos, para tentar escapar dessa limitação, dizer que o que é especificamente
humano não é ter essa capacidade, mas sim poder desenvolvê-la. Essa saída,
contudo, nos levaria a outro obstáculo: e as pessoas com graves deficiências
mentais? São menos humanas, por não possuírem sequer a perspectiva de um dia
desenvolver juízos morais? Acaso podemos tratar pessoas anencéfalas como
animais?
É
claro que não, e a razão para isso se deve ao fato de o conceito de dignidade
de pessoa humana ter se desenvolvido não a partir dos fatos, mas sim a partir
de um dogma. Eis o segredo por trás de toda a noção dos direitos humanos: sua
raiz é teológica.
Jamais
um militante contemporâneo de direitos humanos admitiria isso, já que retomar
essa versão da sacralidade da vida equivaleria a refutar a modernidade do
discurso legitimador em que ele acredita. O militante habitual não é um homem
de fé, mas sim um humanista que acredita que suas noções éticas partem de uma
evolução natural da consciência, inspirada por intuições com o mesmo status
epistemológico das verdades científicas.
O
que John Gray vem tentando insistentemente demonstrar em seus últimos livros é
que essa versão corriqueira do humanismo é um mito antropocêntrico, ou seja, é
um recorte arbitrário da realidade segundo um dogma moral inconsciente. Em última análise, nós também somos animais, e toda
narrativa política secular que ignore isso tem um problema conceitual de base.
Quero
esclarecer que não sou contra a noção defendida pelos direitos humanos. Acho
que devem existir interdições inquestionáveis à atuação do Estado e ao
comportamento das pessoas. A tortura e a escravidão devem ser abolidas. E acho
que as pessoas devem ter o direito de ter acesso a recursos econômicos mínimos
para lhes garantir uma existência digna.
Minha
crença na superioridade moral do discurso dos direitos humanos não me impede,
porém, de identificar o problema conceitual de seus fundamentos. E afirmo que
esse problema é uma séria ameaça à capacidade desse discurso se sustentar ao
longo do tempo, pois embora para algumas pessoas os valores humanistas possam
parecer óbvios, para outras eles não necessariamente representam uma verdade
imediatamente inteligível. Não são poucos os que consideram, por exemplo, a segurança
nacional, o desenvolvimento da economia ou mesmo uma refundação da sociedade
segundo princípios socialistas valores mais importantes do que a defesa do
indivíduo contra o sofrimento. Muitos acham que a perspectiva de se alcançar uma
utopia histórica é argumento forte o bastante para justificar violências
"pontuais" cometidas contra certas pessoas (as que se encontram no
caminho do vagão da história).
É
preciso, portanto, compreender a raiz histórica
do problema da fundamentação dos direitos humanos, e eu ousaria dizer
que essas raízes são facilmente
identificáveis. A noção de homem que inspirou os redatores das primeiras
declarações de direitos é uma criação cristã. Por que a vida humana é sagrada?
Por uma razão muito simples: ela é uma dádiva do Criador do universo – O mesmo
que estabeleceu, a partir do infinito, os parâmetros morais com que devem ser
julgadas as ações das pessoas. Por que o corpo humano não pode ser violado?
Porque nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Muito antes de alguém
sonhar com garantias constitucionais ou um Estado de direito, barbudos profetas
afirmavam a sacralidade da vida humana pelos desertos.
Do
ponto de vista conceitual, a fundamentação teológica da dignidade da pessoa
humana é muito mais coerente do que o relato secular. Enquanto este tropeça na
realidade em busca de evidências "científicas" que demonstrem sua
alegação, a teologia apela a um dogma que não tenta encontrar seu fundamento
nos fatos, mas sim no mundo do espírito. E ainda que seja possível
argumentar sobre se o dogma está correto ou não, a partir do instante em que
ele é aceito, cessam as disputas conceituais: o sistema se apresenta como um
todo coeso, como uma narrativa encadeada que está segura não só quanto a suas
raízes, mas também quanto a seus limites intelectuais.
A
questão fundamental que deve ser perguntada por quem quer que se interesse pelo
tema dos direitos humanos no mundo contemporâneo é a seguinte: é possível
desenvolver um fundamento não-dogmático para a ideia de dignidade da pessoa
humana? Sabemos que é exatamente isso que os militantes e intelectuais humanistas
tentam fazer a todo instante, mas será que esse esforço tem chances de sucesso,
ou não será ele apenas uma tentativa desesperada de preservar uma das mais
nobres heranças do cristianismo, mas sem ter que abraçar os
valores cristãos – que hoje são considerados inaceitáveis para boa parte
das pessoas?
O
humanismo secular é uma forma recalcada de cristianismo, que por um lado não
aceita que a mera ideologia cientificista possa servir de medida para o certo e
o errado, mas que por outro também se envergonha das raízes teológicas de seus
princípios morais. Nesse sentido, ela é uma excrescência intelectual: um órfão
voluntário que renegou seus ancestrais. E
ele nos põe diante de um terrível impasse: por um lado, se quisermos evitar que
uma forma nociva de relativismo moral tome conta dos debates políticos e
jurídicos, precisamos aceitar uma filosofia moral pobre e contraditória,
facilmente refutável por observações rigorosas sobre o mundo. Por outro, não parece
viável dar um passo para trás e abraçar – arrependidos, como o filho pródigo da
parábola – o cristianismo em sua versão tradicional... Por mais que essa
segunda alternativa resolvesse de forma definitiva o nosso problema, ela seria
intelectualmente indigna.
Quem
são os culpados dessa história? Os iluministas, que pela primeira vez mostraram
ao mundo o absurdo da teologia cristã, mas sem nos apresentar uma alternativa às antigas referências morais? Os humanistas seculares, por insistirem
em sua laicidade, mesmo concordando com a substância da mensagem ética das
religiões? Os cientistas, por terem criado um mundo em que a razão e o
progresso foram alçados à categoria de novos deuses – lado a lado do demônio da
prosperidade, simbolicamente representado pelo Moloch de Fritz Lang?
Não:
os culpados são os cristãos. A crise do
cristianismo a que assistimos já desde, pelo menos, uns três séculos, não se explica
pelos ataques externos, mas sim por um esvaziamento interno, que se deve à
incapacidade das igrejas de atualizarem sua mensagem para os novos tempos.
A
teologia cristã é herdeira não só do judaísmo – em que o peso das escrituras na
experiência do sagrado é monumental – mas também da filosofia grega. Antes de
os primeiros apóstolos pregarem a boa nova nas cidades helênicas, as mais inquietas
mentes dessa civilização já especulavam sobre as possíveis características do
Criador do mundo. A síntese da teologia medieval é a expressão máxima desse
hibridismo: por um lado, aceitavam-se como inquestionáveis as fontes bíblicas; por outro, escrutinava-se todo e cada conceito com a mais rigorosa
racionalidade. Não podemos esquecer que, quando a Suma Teológica foi escrita,
ela representava o que havia de mais desenvolvido não apenas em termos de
teologia, mas também em termos de pensamento filosófico.
Embora
o cristianismo tenha um profundo irracionalismo de inspiração judaica na base
de seu pensamento, ele também é um dos herdeiros da tradição intelectual grega. Ou seja, o Deus cristão não é apenas o Jeová, que se enciuma com seu
povo eleito e impõe castigos terríveis aos seus filhos: ele também é o Demiurgo
grego, ou seja, pura inteligência e pura racionalidade. Um cristão não
esperaria menos de seu Deus do que infinita bondade e infinita inteligência.
Qualquer contradição intelectual do sistema de pensamento cristão, portanto,
precisa de algum modo se justificar à luz de um ou outro desígnio secreto –
que, quando considerado à luz do todo, compensaria as contradições conceituais.
Isso
quer dizer que a tradição do embate, do diálogo e da argumentação racional
também é um legado cristão – um legado que convive proximamente e muitas vezes
conflituosamente com o legado bíblico. Foram os doutores da Igreja, afinal, que
ensinaram aos europeus a arte da retórica e os fundamentos da lógica
aristotélica – sementes que posteriormente iriam tornar possível a revolução
científica da Idade Moderna.
Como
os cristãos puderam pensar, então, que eles poderiam sobreviver às mudanças do
tempo sem atualizar-se intelectualmente? Como eles, que já estiveram na
vanguarda das investigações científicas e racionalistas, puderam acreditar que
suas ovelhas continuariam aceitando argumentos e explicações que podiam ser
muito apropriados para a Idade Média, mas que jamais seriam capazes de
convencer uma pessoa que nasceu após a revolução industrial?
O
humanismo secular ganhou proeminência política no vazio espiritual deixado pelo
recuo do cristianismo. Ele ocupou um espaço que não era seu, após as malfadadas
tentativas de outras ideologias seculares apocalípticas de trazer à história o
Reino dos Céus. Isso foi possível apenas por negligência dos pastores: se uma
concepção tão absurda quanto a do humanismo pôde se desenvolver, isso foi
porque a alternativa – o pensamento cristão – parecia mais absurda ainda.
Como
resultado, o Ocidente assistiu a uma das maiores catástrofes culturais de que
se tem notícia: a dessacralização do mundo. Diante da absurdidade de Deus, só
restou ao homem supor que o universo inteiro era uma prodigiosa e terrível
máquina – um complexíssimo relógio apartado do Absoluto, tique-taqueando eternamente
para as vastidões mortas do espaço sideral.
A
tão alardeada pobreza espiritual de nosso tempo confunde-se com a crise do
cristianismo. Pois embora poucas pessoas hoje estejam dispostas a reconhecer
isso, a história de nossa civilização se confunde com a história da religião
cristã. Abandoná-la nos deixou culturalmente órfãos, e é por isso que hoje
estamos tão vulneráveis ao tresloucamento das narrativas políticas mundanas, à
competição cultural das outras tradições culturais humanas e ao escapismo da
prosperidade econômica. E é nessa desolação que o relativismo de valores finca
suas raízes, prenunciando a continuidade da indecorosa violência que nos
assolou no século passado.
Para
reencontrar a dignidade da pessoa humana, para afirmar de vez a inviolabilidade
de nosso direito à vida, à liberdade e à integridade corporal, para
desenvolver, enfim, uma legitimação convincente para o discurso dos direitos
humanos, precisamos redescobrir o sagrado. E isso só será possível se os fiéis
saírem do encastelamento intelectual que praticamente os apartou da vida
pública no mundo contemporâneo e desencadeou o esvaziamento do sentido da vida
humana nas margens do Atlântico. Precisamos retomar a síntese entre o absurdo,
o revelado e o racional: a religião sem a razão não passa de um exercício de
auto-engano, a razão sem religião pode se transformar na prática
inconsciente de uma nova idolatria.
Sem essa renovação, só restará aos
cristãos entoar, por hábito, os pontos absurdos de sua fé enquanto o mundo
inteiro os ignora, e só restará aos humanistas continuar sua tocante busca pelo
sentido da vida num universo em que, à despeito de nossos melhores esforços,
nós não nos reconhecemos.
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