terça-feira, 17 de setembro de 2013

A Grande Abertura



 

            Havia, na abertura da Exposição de Arte Contemporânea, obras de todo o mundo. A fina flor das artes plásticas internacionais estava representada.
            A convite dos organizadores do evento, uma comitiva de críticos de arte de diferentes backgrounds foi convidada para selecionar as obras mais significativas. Um prêmio em dinheiro seria concedido à peça que eles considerassem a mais inovadora, e por isso havia alguma expectativa dos expositores sobre os comentários que eles pudessem fazer sobre suas obras.
            Depois de passar pela exposição francesa, que continha uma única placa dizendo “isso não é uma exposição”, e pela americana – onde, ao lado de uma máquina que constantemente queimava notas de um dólar, estava acontecendo uma apresentação ao vivo das obras de John Cage para piano de brinquedo – os avaliadores chegaram à exposição brasileira – uma das mais badaladas daquele ano.
            O que imediatamente chamou a atenção de Austragésilo, o mais velho e sisudo dos cinco críticos da comitiva, foi um cheiro incrivelmente desagradável infectando o ar. Será que o esgoto havia estourado em algum lugar? Ou será que o estande tinha sido armado ao lado do banheiro masculino? Isso era um ponto negativo que deveria ter sido considerado pelos organizadores, pensou ele.
            Seus colegas pareciam não fazer caso da fedentina. Sem conseguir esconder certo entusiasmo, eles apressaram o passo em direção à obra de um dos artistas mais festejados da cena contemporânea, Adalberto Tokushuko, o famoso escultor e performer nipo-brasileiro, possivelmente a vedete daquela exposição.
            “Oh!”, “Ah!”, “Uh!”, escutou Austragésilo, que havia ficado para trás.
            – Que obra estupenda!
            – Mas que ousadia!
            Cobrindo as narinas com um lenço e se esforçando para tentar espiar por cima dos ombros de seus colegas, Austragésilo viu o que estava causando tanta comoção. Em cima de um prato de porcelana chinesa, ao lado de baixelas de prata, havia um enorme cocô.  
            – Realmente um trabalho visceral. – disse um dos críticos.
            – Aí você disse tudo! – concordou um segundo.
– Mas não se deixem levar por uma interpretação superficial. – observou, com sobriedade, o terceiro. – Esse é um trabalho que permite múltiplas leituras.
            – Tudo depende do olhar do expectador. – Assentiu o quarto.
            Austragésilo poderia até concordar que, segundo os parâmetros que regem a arte de cagar, aquele tolete realmente era uma obra-prima. A dimensão prodigiosa, os diferentes tons de marrom (segundo a nota explicativa ao lado da obra, era ao todo 50), a forma cilíndrica ajustando-se em espiral em torno de um eixo, a textura pastosa: tudo fazia o espectador duvidar que aquela bosta pudesse ter saído de dentro de um ser humano. Era realmente um cocô fenomenal. Agora, daí a dizer que aquilo era uma realização estética era um pouco demais para as predileções artísticas de Austragésilo... Seus colegas, porém, não paravam de comentar:
            – É preciso entender o que o artista quis expressar com seu trabalho. Eu percebo, aqui, uma grande inquietação existencial. O artista está se expondo, mostrando ao mundo toda a angústia que possui dentro de si.
            – Eu diria que é uma metáfora da condição humana no século XXI. Essa é uma obra difícil, arte engajada na sua melhor forma. O autor esquivou-se da tentação de apresentar uma estética palatável, de fácil digestão pela platéia.
            – Verdade. Eu diria, inclusive, que a peça exige uma co-participação do espectador. Afinal, o que é a obra de arte em si mesma? Quase nada. Só se entende sua força quando se leva em conta o impacto que ela causa no sentido de quem a vê, quem a sente.
            – Claro! E a técnica primitivista pode inclusive confundir um observador superficial. É um erro pensar que qualquer pessoa seria capaz de fazer algo assim. O talento do autor foi justamente partir de um objeto prosaico para uma experiência estética que é universal.
            – Apenas um mestre conseguiria alcançar tamanho impacto com tão elevado nível de sofisticação teórica. Chego a dizer que é até difícil ficar indiferente ao que o artista expressou.
            – É algo que nos toca intimamente. A reação inicial de repulsa é quase irracional. Mas, após o primeiro impacto, não há como não perceber a profunda singeleza da peça.
            – Mas claro! Sinceramente, não quero muito forçar as interpretações, acho isso pedante e até insuportável. Mas será que só sou eu aqui que acho que o artista quis, também, passar uma mensagem social?
            – Como não? Mesmo quando não é alegórica, a arte não se despe totalmente de simbolismos. Eu diria que há um signo subjacente, ou seja, a idéia de que todos os homens estão ligados pelo ato mesmo que permitiu ao artista criar a sua obra.
            – Sim, o homem tem algo de podre dentro de si, e o criador não teve medo de explicitar isso com a crueza de sua tônica. Mas, sinceramente, o que mais me impressionou foi o refinamento técnico... Já sabia que o Tokushuko era um mestre, mas aqui ele se mostrou gênio em seu obrar.
            – E tudo feito com cuidado de artesão. Ai, estou encantado!
            Austragésilo tinha ficado calado durante toda a conversa. Depois de mais alguns minutos de elogios, um de seus colegas percebeu seu desconforto e, talvez para provocá-lo – sabendo quão tradicionalista ele costumava ser em seus juízos – perguntou:
            – E você, Austragésilo, o que achou da obra?
            Todos se calaram e olharam para ele, com grande ansiedade. Não era segredo que Austragésilo era um representante da escola antiga, mas ainda assim, por ser um erudito da história da arte e pessoa extremamente criteriosa, ele costumava ser ouvido com atenção mesmo nas rodas descoladas.
            Ele ainda olhou por um ou dois segundos para aquilo, encarou seus quatro colegas e concluiu:
            – Eu achei que isso daqui é uma merda.
            Houve um pigarro de constrangimento. Ninguém esperava tamanha falta de tato. O segundo crítico, que era mais diplomático, interveio, tentando retomar o rumo perdido da conversa:
            – É, é uma maneira de interpretar o problema colocado pela obra. Mas, bem, vamos que ainda temos vários trabalhos para julgar. Façam suas anotações e vamos para o próximo estande.

***
No coquetel de comemoração da abertura da exposição, os quatro críticos comentaram, enquanto tomavam champanhe:
– Nossa, o Austragésilo é tão antiquado, né?
– Sinceramente, eu esperava um pouco mais dele...
– Sério, pois eu não esperava nada. Ele é um tradicionalista, um academicista enrustido.
– Ai, gente, nós estamos no século XXI. Hello!
            – Ah, e vocês vão ficar dando bola para ele?
            – Ele que pense o que quiser. Só acho um absurdo ele fazer parte do comitê avaliador.
            – Parece que ele tem amigos influentes...
            – Só pode. Bem, me disseram até que ele é católico.
            – Aff, ta explicado.


           


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