quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Sobre as Manias e as Causalidades Ocultas do Universo

Exemplo clássico de transtorno obsessivo-compulsivo

       

Certos antropólogos observam que alguns indivíduos que as sociedades contemporâneas tomam por desequilibrados seriam considerados, nas sociedades primitivas, sábios ou intérpretes da vontade divina.
            É só ver o caso das pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo. Que rótulo terrível, para começo de conversa! Que maneira depreciativa de qualificar pessoas que apenas possuem convicções diferentes sobre o funcionamento do universo!
            Todos temos os nossos rituais. Quem seria capaz de dormir, por exemplo, sem escovar os dentes, pegar um copo d'água, colocar o pijama, ajeitar a posição do ventilador e verificar se as portas do guarda-roupas estão bem fechadas?  De outro modo não se poderia ter uma boa noite de sono, pois, como se sabe, as aberrações sombrias do submundo precisam apenas de uma porta de armário entreaberta para invadir nossa realidade e dilacerar o primeiro infeliz que encontrassem com o pé pendendo para fora do colchão.
            Pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo simplesmente levam ao extremo a mesma intuição que fez com que os chineses de antigamente tentassem recriar a ordem cósmica por meio dos rituais sociais. Elas estão convencidas de que há uma relação oculta entre os pequenos gestos do cotidiano e resultados ominosos e imprevisíveis. Por isso é tão importante lavar a mão diversas vezes, dobrar a camisa exatamente daquele jeitinho, evitar pisar em cima das divisórias do calçamento e calcular com muito cuidado quantas vezes o papel higiênico deve passar pela bunda. Sabe-se lá que catástrofes poderiam advir de um descuido!
            Quero deixar muito claro que não estou sendo irônico, e com uma reflexão elementar sobre os problemas implícitos na ideia de causalidade pretendo provar que as pessoas com manias tem, sim, um ponto.
            Vivemos num mundo em que um monte de coisas acontece o tempo todo. Depois de alguns anos vendo coisas parecidas acontecerem em contextos similares, começamos a suspeitar da existência de certas regularidades. Por exemplo, depois de repetidas vezes observarmos um menino chorar depois de levar da mãe um tapa na bunda, concluímos que a causa do choro é o tapa – ou a dor que ele provoca. Do mesmo modo, concluímos que a causa da fome é o meio-dia.
            Parece um relato honesto sobre o funcionamento do Cosmos: algumas coisas provocam outras e assim, com os fenômenos se provocando, o mundo gira. Se formos atentos o bastante e desenvolvermos métodos e instrumentos de aferição apropriados, supostamente seríamos capazes de identificar as causas de qualquer fenômeno do universo.
            Ou pelo menos é isso de que nos tentam convencer os adeptos da ideologia cientificista. Vários filósofos já demonstraram o que há de problemático com o conceito de causalidade: Hume achou que fosse uma mera impressão subjetiva, Kant argumentou que se trata de um aspecto de nossa mente – e não do mundo –  que nos permite organizar e conhecer nossa experiência das coisas; Nietzsche disse que era uma projeção no universo de realidades subjetivas, ou seja, do mundo da vontade e da intencionalidade.  
            Em meu modo de entender, o problema é ainda mais grave. A experiência humana dos acontecimentos é muito limitada: direcionamos nossa atenção para o que está acontecendo em nossa volta. Tentamos estabelecer relações diretas entre os fenômenos contíguos no espaço, mas nem por um segundo nos questionamos sobre que conexões podem existir entre algo que esteja acontecendo aqui e agora, e outra coisa aparentemente sem relação, que esteja acontecendo no mesmo instante, do outro lado do universo!
            Suspeito que, se tivéssemos a capacidade de apreender os fenômenos do universo como um todo, formaríamos um quadro bem diferente sobre o que causa o quê. Por exemplo, ao percebermos que uma supernova explodiu na constelação de Andrômeda exatamente no instante em que um jumento soltou um peido em Quixeramobim, certamente atribuiríamos um valor causal muito diferente às ventosidades dos asininos.
            Einstein precipitou-se ao dizer que Deus não joga dados. Que sabemos nós do tédio absoluto de uma imobilidade além do espaço e do tempo? Talvez o universo não tenha sido criado com outro propósito que o de permitir essa forma de divertimento, ou seja, a identificação – pelas mentes prodigiosas que o contemplam – de causalidades aleatórias entre fenômenos aparentemente desvinculados. Os gregos, afinal, foram bem enfáticos em caracterizar o Olimpo como um grande cassino, em que os deuses apostavam entre si quanto ao destino dos mortais[1].

            Se esta suposição estiver correta, então não se surpreenda se você um dia descobrir que provocou uma crise de retroalimentação que destruirá irreversivelmente a biosfera de nosso planeta ao levantar-se hoje com o pé esquerdo. Talvez você nem consiga estabelecer essa relação – já que o resultado de seu gesto leviano só se manifestará com plena força depois de anos, quem sabe décadas. A destruição definitiva do gênero humano não será, nem por isso, sentida com menos dor. E, diante de intuições tão desconcertantes, quem poderia afirmar com segurança que a verdadeira causa da I Grande Guerra foi o assassinato do Príncipe Ferdinando, e não a morte de um mosquito na aldeia de Stiepantchikovo?
            Nunca poderemos saber com exatidão quantos tsunamis e quedas de asteroides foram evitados pela diligente precaução daqueles que insensivelmente alcunhamos de obsessivos compulsivos. Milhões de vidas podem ter sido salvas pelo cuidado de uma pessoa que evita misturar as canetas azuis com as vermelhas, e talvez nossa civilização ainda exista apenas pelo zelo do herói anônimo que jamais ousou tirar o seu bonequinho dos comandos em ação da embalagem!
Claro, o fato de as conexões ocultas serem possíveis não significa que elas sejam prováveis. Mas, sabe como é, um pouquinho de precaução nunca matou ninguém...  






[1] Cogita-se, inclusive, que o declínio do politeísmo deveu-se ao sério endividamento dos deuses helênicos, que, após eras de jogatina disparatada, precisaram pedir empréstimos ao Deus Judeu, muito mais severo e circunspecto.


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