Exemplo clássico de transtorno obsessivo-compulsivo |
Certos antropólogos observam que alguns indivíduos que
as sociedades contemporâneas tomam por desequilibrados seriam considerados, nas
sociedades primitivas, sábios ou intérpretes da vontade divina.
É só ver
o caso das pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo. Que rótulo terrível,
para começo de conversa! Que maneira depreciativa de qualificar pessoas que
apenas possuem convicções diferentes sobre o funcionamento do universo!
Todos
temos os nossos rituais. Quem seria capaz de dormir, por exemplo, sem escovar
os dentes, pegar um copo d'água, colocar o pijama, ajeitar a posição do
ventilador e verificar se as portas do guarda-roupas estão bem fechadas? De outro modo não se poderia ter uma boa noite
de sono, pois, como se sabe, as aberrações sombrias do submundo precisam apenas
de uma porta de armário entreaberta para invadir nossa realidade e dilacerar o
primeiro infeliz que encontrassem com o pé pendendo para fora do colchão.
Pessoas
com Transtorno Obsessivo Compulsivo simplesmente levam ao extremo a mesma
intuição que fez com que os chineses de antigamente tentassem recriar a
ordem cósmica por meio dos rituais sociais. Elas estão convencidas de que há
uma relação oculta entre os pequenos gestos do cotidiano e resultados ominosos e imprevisíveis. Por isso é tão importante lavar a mão
diversas vezes, dobrar a camisa exatamente daquele jeitinho, evitar pisar em
cima das divisórias do calçamento e calcular com muito cuidado quantas vezes o
papel higiênico deve passar pela bunda. Sabe-se lá que catástrofes poderiam
advir de um descuido!
Quero
deixar muito claro que não estou sendo irônico, e com uma reflexão elementar sobre os problemas implícitos na ideia de causalidade pretendo provar que as pessoas com manias tem, sim, um ponto.
Vivemos
num mundo em que um monte de coisas acontece o tempo todo. Depois de alguns
anos vendo coisas parecidas acontecerem em contextos similares, começamos a
suspeitar da existência de certas regularidades. Por exemplo, depois de
repetidas vezes observarmos um menino chorar depois de levar da mãe um tapa na
bunda, concluímos que a causa do choro é o tapa – ou a dor que ele provoca. Do
mesmo modo, concluímos que a causa da fome é o meio-dia.
Parece
um relato honesto sobre o funcionamento do Cosmos: algumas coisas
provocam outras e assim, com os fenômenos se provocando, o mundo gira. Se
formos atentos o bastante e desenvolvermos métodos e instrumentos de aferição
apropriados, supostamente seríamos capazes de identificar as causas de qualquer
fenômeno do universo.
Ou pelo
menos é isso de que nos tentam convencer os adeptos da ideologia cientificista.
Vários filósofos já demonstraram o que há de problemático com o conceito de
causalidade: Hume achou que fosse uma mera impressão subjetiva, Kant argumentou
que se trata de um aspecto de nossa mente – e não do mundo – que nos permite organizar e conhecer nossa
experiência das coisas; Nietzsche disse que era uma projeção no universo de
realidades subjetivas, ou seja, do mundo da vontade e da intencionalidade.
Em
meu modo de entender, o problema é ainda mais grave. A experiência humana dos
acontecimentos é muito limitada: direcionamos nossa atenção para o que está
acontecendo em nossa volta. Tentamos estabelecer relações diretas entre os
fenômenos contíguos no espaço, mas nem por um segundo nos
questionamos sobre que conexões podem existir entre algo que esteja acontecendo
aqui e agora, e outra coisa aparentemente sem relação, que esteja acontecendo no
mesmo instante, do outro lado do universo!
Suspeito
que, se tivéssemos a capacidade de apreender os fenômenos do universo como um
todo, formaríamos um quadro bem diferente sobre o que causa o quê. Por exemplo,
ao percebermos que uma supernova explodiu na constelação de Andrômeda
exatamente no instante em que um jumento soltou um peido em Quixeramobim,
certamente atribuiríamos um valor causal muito diferente às ventosidades dos
asininos.
Einstein
precipitou-se ao dizer que Deus não joga dados. Que sabemos nós do tédio
absoluto de uma imobilidade além do espaço e do tempo? Talvez o universo não
tenha sido criado com outro propósito que o de permitir essa forma de
divertimento, ou seja, a identificação – pelas mentes prodigiosas que o
contemplam – de causalidades aleatórias entre fenômenos aparentemente
desvinculados. Os gregos, afinal, foram bem enfáticos em caracterizar o Olimpo
como um grande cassino, em que os deuses apostavam entre si quanto ao destino
dos mortais[1].
Se
esta suposição estiver correta, então não se surpreenda se você um dia
descobrir que provocou uma crise de retroalimentação que destruirá
irreversivelmente a biosfera de nosso planeta ao levantar-se hoje com o pé
esquerdo. Talvez você nem consiga estabelecer essa relação – já que o resultado
de seu gesto leviano só se manifestará com plena força depois de anos, quem
sabe décadas. A destruição definitiva do gênero humano não será, nem por isso,
sentida com menos dor. E, diante de intuições tão desconcertantes, quem poderia
afirmar com segurança que a verdadeira causa da I Grande Guerra foi o
assassinato do Príncipe Ferdinando, e não a morte de um mosquito na aldeia de
Stiepantchikovo?
Nunca
poderemos saber com exatidão quantos tsunamis e quedas de asteroides foram
evitados pela diligente precaução daqueles que insensivelmente alcunhamos de
obsessivos compulsivos. Milhões de vidas podem ter sido salvas pelo cuidado de
uma pessoa que evita misturar as canetas azuis com as vermelhas, e talvez nossa
civilização ainda exista apenas pelo zelo do herói anônimo que jamais ousou
tirar o seu bonequinho dos comandos em ação da embalagem!
Claro, o fato de as conexões ocultas serem possíveis
não significa que elas sejam prováveis. Mas, sabe como é, um pouquinho de
precaução nunca matou ninguém...
[1] Cogita-se, inclusive, que o declínio do politeísmo deveu-se ao sério
endividamento dos deuses helênicos, que, após eras de jogatina disparatada, precisaram
pedir empréstimos ao Deus Judeu, muito mais severo e circunspecto.
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