sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

UMA TEORIA DA FICÇÃO A PARTIR DE JOSÉ LINS DO REGO


 O post de hoje para mim é especial porque ele é uma contribuição de um muito caro amigo, Frederico Oliveira de Araújo.

 Conhecedor dos assuntos mundanos e divinos, rapsodo meio cearense/meio maranhense, atualmente defensor dos fracos e oprimidos na fronteira do Brasil com o Paraguai, diplomata nas horas vagas, Fred desvendou o sentido da vida aos 14 anos, e até hoje nunca o revelou a ninguém.

 Em seu texto, Fred parte de suas leituras do célebre paraibano Zé Lins do Rego para desenvolver uma visão pessoal do fazer literário. Uma reflexão que publico com alegria, com a certeza de que ela elevará em muito a média de qualidade deste blog (serão necessárias pelo menos umas 4 crônicas minhas sobre besteirol para trazer a média geral de qualidade ao nível anterior).

Ass. O Editor


UMA TEORIA DA FICÇÃO A PARTIR DE JOSÉ LINS DO REGO
Por Frederico Oliveira de Araújo


Na obra de Zé Lins, encontramos alguns símbolos que desvelam a própria essência da ficção literária e sua "função" na nossa vida. O escritor insiste em um tema arquetípico: a aventura, a abertura para o mundo, o anseio humano de sair do ambiente mesquinho e descobrir novos horizontes. Assim é o coração de Carlinhos, um de seus personagens principais, da trilogia MENINO DE ENGENHO, DOIDINHO, BANGÜÊ. É também o caso do personagem Bento em PEDRA BONITA e CANGACEIROS.

O protagonista de MENINO DE ENGENHO é levemente diferente. Trata-se de uma criança descobrindo o mundo, para quem tudo é novo. Mas essa mesma personagem cresce e se torna o adolescente de DOIDINHO, que passa a habitar o universo fechado de um internato. Ali Carlinhos começa a ter uma experiência do mal, das injustiças e da crueza do mundo, de modo que as imagens de sonho são a própria infância idílica na fazenda, onde a vida era encantada. Já em BANGÜÊ, o adulto Carlos é um bacharel em direito, formado em Recife, desvocacionado. Volta para o engenho do avô no interior da Paraíba com o canudo na mão e sem saber o que fazer da vida. Fica aguardando uma indicação para a promotoria, que nunca chega, enquanto vai esperando o tempo passar na fazenda. E se descobre um homem sem habilidade alguma: nem para as letras jurídicas que estudou sem entusiasmo, nem para chefiar os homens do eito na lavoura. Passa dias encostado na casa-grande deitado na rede ou matando moscas num gesto de absoluta falta de sentido...

BANGÜÊ é para mim o melhor romance de Zé Lins, e a sinopse acima é apenas o fragmento de um
dos seus infinitos aspectos para fins deste ensaio. Vale muitíssimo a pena lê-lo. Mas o que interessa no momento é explorar esse sentimento de mal-estar no mundo que está presente nas obras citadas. Em CANGACEIROS, Bentinho se vê num ambiente hostil de ameaças iminentes. Ele é o irmão caçula do maior cangaceiro dos sertões num tempo em que o menor relacionamento com coiteiros atraía a repressão violenta e indiscriminada das forças policiais. As pessoas avisam que volantes cercam as redondezas. Sua pequena casa está em perigo, mas ele não consegue tomar a iniciativa de fugir. O medo o paralisa. Adia inúmeras vezes esse passo necessário e decisivo. A filha do mestre de alambique o espera; está noivo da moça e tem a aprovação dos futuros sogros. Mas aí a própria dignidade do ato se transforma em empecilho para a partida: não podem casar na calada da noite, como fugitivos; isso seria uma desonra para a mulher da sua vida. Ele chega a imaginar uma vida melhor no Rio de Janeiro ou na capital, mas evita por fraqueza realizar o sonho.

Esses protagonistas de José Lins são gente pura e indecisa, que não compreende bem os acontecimentos a seu redor. Sente-se desnorteada pelo mundo e seus males; quer reagir aos perigos mas não tem força ou não sabe como fazê-lo. É aí que entra em cena outro arquétipo usado pelo escritor: o rapsodo errante, no caso do universo nordestino, o cantador de viola. Como aedos sertanejos, esses cantadores percorrem o interior do Nordeste contando histórias maravilhosas, abrindo a dimensão do fantástico e um universo inteiro de possibilidades. Em MENINO DE ENGENHO, a Velha Totonha era uma "edição viva das mil e uma noites".  Em CANGACEIROS, é só o cantador Dioclésio quem consegue provocar Bentinho a sair da paralisia e consequentemente salvar a sua vida e a de Alice. No romance anterior, PEDRA BONITA, é pela voz musical de Dioclésio que Bento fora apresentado a um universo completamente novo. Bento se cria na vila do Açu, aldeia minúscula e sem graça, onde as pessoas o desprezam e ocupam o tempo com mesquinharias. Mas um dia chega à vila o trovador e lhe conta suas aventuras, suas canções ponteadas na viola, seus amores proibidos com mulheres bonitas, enfim, toda uma vida rica de experiências.


É precisamente esta a função da literatura: doar um universo de possibilidades. A boa ficção não pretende convencer alguém a mudar de opinião, como faz o discurso retórico; nem fazer uma descrição mais exata dos fenômenos, como faz o discurso científico; nem muito menos organizar o pensamento numa estrutura gramaticalmente correta, como o discurso lógico. A literatura se destina a criar aquilo que Coleridge chamou de "suspensão da descrença": a imaginação, o mundo da fábula, onde tudo é possível, é possível até bichos falarem como gente. Já dizia Aristóteles: não seria verossímil que a vida fosse 100% verossímil o tempo todo...

Nessas semi-verdades ficcionais escondem-se profundas verdades essenciais. Na escala de certezas do conhecimento humano que vai do 1) possível, 2) verossímil, 3) provável e 4) certo, a nossa vida deve abrir-se primeiramente ao campo do inesperado. Há pessoas tão fechadas em si mesmas que não conseguem sequer elaborar mais de uma hipótese explicativa para dado fenômeno. Conheço algumas assim. Mas os bons cientistas têm uma rica imaginação, isto é, precisam abrir-se às hipóteses improváveis se querem descobrir alguma coisa.

Aprender a conviver com esses "milagres", eu diria, do mundo da ficção é o que há de mais profundamente humano. Por isso a literatura educa e humaniza.

DIÁRIO DE UM CÔNSUL NA FRONTEIRA, 09 DE JANEIRO DE 2014


Um comentário:

  1. Até que enfim algo de útil nesse blog! =)
    Eduardo, obrigado por compartilhar.
    Abs,
    Felipe

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