domingo, 24 de agosto de 2014

Flores no esgoto

Marcelo Maio, 24/08/14


O técnico da companhia de água da cidade estava debruçado sobre o asfalto quente, mexendo em sabe-se lá o que no bueiro. Vez ou outra viam-se pequenas baratas saindo de lá e fugindo de forma apressada pela calçada, aparentemente desconcertadas com a súbita iluminação encontrada.

Um senhor se aproximou com um sorvete na mão e falou:

– Barata é um bicho injustiçado, né? Nem os ativistas dos direitos dos animais defendem uma barata. Ninguém gosta delas. É unânime!
– Também, pudera, né, meu senhor? – respondeu o funcionário. – Que bicho nojento da moléstia!
– Toda unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues. Se é unânime que se trata de um bicho repugnante, é porque ele deve ter algo de encantador.

O trabalhador fez um assovio de reprovação e voltou a cabeça para dentro do bueiro. O velho continuou chupando seu sorvete, ridiculamente (não que seja culpa dele; é que um homem chupando um sorvete é sempre uma cena ridícula).

– Da mesma forma, acho encantadora sua profissão – disse o senhor. O trabalhador voltou de novo sua cabeça para a claridade e perguntou:
– Como é que é? Acha o quê?
– Encantadora. Sua profissão, assim como as baratas, é, na opinião unânime, repugnante. Assim como as baratas são encantadoras em um mundo onde toda unanimidade é burra, o mesmo posso dizer do seu trabalho.
– Meu senhor, então me explique qual é o encanto disso aqui, porque eu não estou entendendo não.
O velho pensou um pouco e, sem deixar de ser ridículo com seu sorvete, falou:

– Às vezes, andamos por um caminho florido e, repentinamente, pisamos em flores e não sabemos que abaixo se esconde um buraco. Já aconteceu contigo?
– Não, senhor.
– Nunca te aconteceu pisar em flores sem que houvesse um chão embaixo?
– Não, senhor.
– Metaforicamente falando.
– Não, senhor.
– Bem, comigo, sim. Já pisei em flores e caí no esgoto. Aposto que o contrário é também possível, isto é: tatear o esgoto e colher flores.
– Não, senhor, o senhor não está entendendo mesmo. Aqui, não tem flor não. Aqui, só tem merda, meu senhor. A sua merda, a minha, a da sua mãe, a daquela gostosa ali na esquina, a merda de toda a cidade. Flor, é na floricultura. Aqui, tem merda.

O velhote, então, ficou meio sem jeito e resolveu ir embora.

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