Frederico Oliveira, 10/02/2014
Na manhã de
terça-feira, Érico estava profundamente intrigado com o fato acontecido na
semana anterior. Desde que ingressara na magistratura, Dr. Érico Martins
sentia-se um homem bem pago mas sem vocação para julgar os seus semelhantes.
Suas manhãs de trabalho eram sempre iguais e tediosas. Cultivava por isso
passatempos improdutivos: esperava a hora do almoço navegando na internet ou
usava o telefone para resolver pendências pessoais. À tarde é que ele reagia
contra si mesmo, lutando para encarar suas obrigações. Para isso, abusava do
café forte e mal-coado do fórum.
Mas
o fato da semana passada havia realmente abalado a sua rotina. Em casa, o jovem
doutor estava até perdendo o sono.
Érico
vinha de boa família e foi desde cedo um estudioso. Eu não estaria exagerando
se dissesse que era o orgulho da mamãe. As garotas do colégio rejeitavam seus
beijos, porém as vizinhas reconheciam nele um moço para casar. Mas Érico
cultivava um grave pecado que era a falta de vocação profissional, ou melhor, a
maneira leviana com que ia tocando sua escolha. Escolhera a carreira jurídica
por pura falta de personalidade, aceitando o caminho natural que se espera de
todo rapaz inteligente de classe média. Enfim, ocupava um cargo interessado
mais no salário que lhe garantia farras com o cartão de crédito na Livraria
Cultura, onde costumava saciar sua aridez interior com os clássicos da
filosofia. Julgava-se até um filósofo amador e nutria a esperança de um dia
escrever uma obra-síntese da filosofia do direito, e - quem sabe assim -
conciliar suas angústias existenciais mais sinceras com seus anos perdidos de
bacharel.
Mas
o que lhe incomodava verdadeiramente naquela manhã de terça-feira era o
acontecido da semana passada.
Havia
dias que Érico nem tinha cabeça para seus amados hobbies. Doses
diárias de livros, música, filmes e as diferentes variedades de cerveja
artesanal aliviavam o tédio semanal; eram quase o sentido da vida para ele. Mas
nos últimos dias Érico estava mesmo diferente, pois nas três refeições com a
esposa só falava de trabalho, ocasiões em que antes mudava de assunto:
-
Meu amor, eu passo o dia inteiro naquele inferno e você ainda quer falar de
processo na hora do jantar!
Mas
naquela noite era ele mesmo quem estava obcecado com o fato ocorrido no
trabalho e não deixou a mulher dormir, preocupadíssimo. Érico havia descoberto
um caso de corrupção que vinha ocorrendo debaixo de seus olhos. Ele sabia que
precisava agir rápido para coibir o crime, mas não tinha idéia de qual seria o
caminho seguro e eficaz. Sentia-se naquele momento um jusfilósofo inútil, pois
o que ele então mais carecia era do conhecimento técnico que usualmente
desprezava e da experiência de um carcereiro para lidar com pessoas perigosas.
De que adiantava a paixão com que lia a Apologia de Sócrates diante da urgência
prática de combater delinquentes? Agora, lembrava a advertência cruel e
oportuna do próprio Sócrates de que só é possível investigar a verdade na feira
do centro da cidade, entre vendedores de batata e ladrões de balança, os homens
de carne e osso...
No
seu primeiro ano de magistratura já presenciava aquele crime ocorrendo debaixo
do seu nariz. Juiz da Comarca de Cafundópolis, no Maranhão, terra sem lei e
cheia de matadores de aluguel. Nos tempos de faculdade, era tão fácil vestir a
capa de Batman e encarnar o estudante de direito engajado, o orador inflamado,
o aprendiz de Castro Alves bradando contra as mazelas do País. E agora? Ficava
a manhã em seu escritório planejando o que fazer. Chamava sua única assessora
de um lado para outro, dava ordens sucessivas e atabalhoadas. Estava nervoso
porque tinha de agir sem demora, pensava, mas devia tomar a medida exata e
certeira. Sentia-se dividido entre a urgência e a prudência.
Após
desconfiar do esquema, Érico naqueles dias ia ao trabalho com uma motivação
nova. Afinal, estava se dando conta de que um mínimo de espírito patriótico e
um pouco de diligência eram suficientes para fazer o Brasil melhor, malgrado as
limitações mesquinhas de uma repartição pública. O jovem doutorzinho sentia que
estava fazendo algo relevante para a nação e ficou até orgulhoso de si mesmo.
Parecia que pela primeira vez sua inteligência funcionava de verdade, não como
um parque de diversões para apreciar os arquétipos da mitologia, mas para
reconhecer esses arquétipos na sua própria vida e no mundo em redor.
Dr.
Érico Martins estava agora em sua sala de audiência diante do principal
suspeito.
O
sujeito disfarçava, parecia um cidadão de bem. Mas ali estava um criminoso,
distante apenas meio metro de nosso herói e separados por uma mesa de madeira.
Um sentado defronte ao outro, se estudando, se encarando. Como interrogar?
Érico se perguntava qual a pergunta certa a fazer. Mas não queria demonstrar
insegurança ao oponente. A idade daquele senhor grisalho – sabe-se lá por onde
já havia passado – pesava ante os 28 anos de Érico. Mas ele repetia de si para
si ser capaz de vencer o Golias. Num átimo de segundo, lembrou o cenho franzido
do Davi de Michelangelo, o pétreo olhar de cálculo.
Começou
o interrogatório fazendo perguntas casuais e sem relação direta com o crime.
Havia nisso uma procura cega de quem tateia o inimigo no escuro. O falsário
estava se divertindo com a inexperiência do juiz, pois sorriu um sorriso de
canto de boca. Érico pensou: - É melhor assim. Vou deixar que ele me
subestime. Respeitarei meu adversário, enquanto ele corre o risco de
escorregar.
Num
instante de iluminação interior, veio-lhe à mente o tiro certeiro. Já havia
visto alguém fazer isso bem, só não lembrava onde. Acho que foi no livro dos 38
estratagemas dialéticos do Arthur Schopenhauer. Não, não foi. Ah... lembro. Foi
no seriado americano Lie To Me. Foi aí que teve a idéia de colocar a pergunta
de cabeça para baixo:
-
Com quem o senhor aprendeu a fazer uma falsificação tão ruim?
-
Hãm?
Em
questão de minutos, estava tudo desmascarado. O réu se perdeu em contradições.
Calou-se um instante. Viu que estava encrencado. Baixou o olhar. Então começou
a confessar todo o esquema. Deu nomes, contou detalhes, se disse arrependido.
Fez cara de choro. Era o Golias no chão estatelado, a pedra de um lado e a
marca da pedrada na testa. Vitória.
***
Quando
Érico me contou essa história pelo telefone estava sensibilizado. Conheço o
Érico desde os tempos de faculdade e afirmo que ele sempre foi um sujeito que
se empolga rápido com as coisas. Apesar de hoje morarmos em cidades distantes,
nos correspondemos por e-mail e trocamos visitas de vez em quando. Raquel, a
sua esposa, se dá muito bem com a Karina, minha mulher. Ele é um cara legal.
Mas um pouco perdido em abstrações, devo dizer.
Nossa
conversa ao telefone foi algo mais ou menos assim:
–
Érico, rapaz, que bela história. E agora o que você vai fazer? Vai colocar todo
o mundo na cadeia?
–
Bom, já tomei as providências. Tirei um peso enorme dos meus ombros. Ontem
dormi o sono dos justos. Olhe, não há nada melhor do que tranquilidade. Aos
poucos vou retomando meus projetos intelectuais: estou doido para ler Joseph Conrad,
já leste?
–
Ainda não... Mas acabei de ter uma sacação sobre aquele problema do Hans Kelsen
que te aporrinha.
–
É sério?
–
Seriíssimo. Não percebeu que você se tornou um mutante do X-Man?
–
Como assim?!
–
Você será um homem novo após esse episódio. Passou por uma espécie de batismo.
Desde a faculdade você quis ser filósofo e escrevia artigos tentando refutar o
positivismo jurídico. Todo o seu estudo é um esforço para superar a Teoria Pura
do Direito. Pois olhe agora para a sua vida. Você seguiu sua intuição, por isso
desvendou a verdade do caso. Se fosse um legalista estaria cumprindo o seu
dever, mas não seria um homem realizado.
–
Isso não é uma prova contra o positivismo.
–
Eu sei que não é uma prova teórica. Mas receba essa experiência que você
acabou de atravessar como uma metáfora, um símbolo. A imagem aqui é da sombra
que se projeta num ambiente de luz parcial. Se abra, meu amigo, para
compreender as sombras mesquinhas que há na vida e você vai encontrar a luz que
procura.
–
Estou entendendo...
–
Você renasceu do alto. O seu encontro cara a cara com o falsário revelou a
falsidade da sua vida. Revelou as mentiras que você inventou para si mesmo
quanto à sua profissão. Não tenha medo. Me fez lembrar aquele verso do
Mário Quintana:
Todos
aqueles que estão
Atravancando
o meu caminho,
Eles
passarão.
Eu
passarinho...
–
Vou te chamar agora de Érico Passarinho. Dá um belo nome de filósofo alemão,
não acha?
Érico
sorriu. Sorrimos juntos ao telefone.
–
A piada é boa. É mais engraçado porque a Raquel às vezes me chama de “meu
passarinho”. Ela diz que eu vivo contente cantando fiu-fiu por aí, mas quando
alguém pisa no meu calo eu viro um sabiá zangado dentro da gaiola.
–
Você vai voar no céu azul.
Sorrimos
mais uma vez. E nos despedimos àquela noite com a promessa de nos visitar em
breve. Desliguei e fiquei pensativo. É. Preciso visitar mais os meus amigos.
Tenho saudade deles aqui no exterior onde me encontro. A vida na diplomacia é
como um exílio que a gente mesmo se impõe. E se impõe não sei para quê. Eu
imagino como o Érico deve ter ficado feliz de receber meu telefonema inesperado
e distante, logo no momento em que ele estava passando por aquele problemão no
Maranhão. Sim. Ele deve ter ficado feliz. Imagino até ele repetindo diante do
espelho: Prazer, Érico Martins. Mas pode me chamar de Érico, o Passarinho.
DIÁRIO
DE UM CÔNSUL NA FRONTEIRA
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