O pensamento de Schopenhauer é
intrigante. A primeira das proposições de seu monumental livro é fácil de
entender: o mundo como Representação nada mais é do que a filosofia kantiana. Nossa
experiência da realidade necessariamente passa pelos sentidos, o que significa
que jamais podemos intuir os objetos enquanto tais – enquanto coisa-em-si – mas
apenas percebê-los como fenômenos (enquanto impressão sobre nossas faculdades
sensoriais).
Mas que o mundo seja Vontade...
já é menos óbvio. Se alguém se aventurasse a ler Schopenhauer logo depois de
ter lido Nietzsche, possivelmente suporia que a ideia de um mundo como Vontade
é a expressão de uma filosofia irracionalista – menos preocupada como o método
do que com a capacidade expressiva da teoria de dar conta de um mundo em que
todos parecem estar numa eterna luta contra todos. Isso seria um erro, pois
ainda que Schopenhauer tenha, de fato, influenciado toda uma vertente
irracionalista do pensamento europeu, ele é na verdade um kantiano, ou seja, um
filósofo profundamente preocupado com o método.
Como, então, ele chegou a
conclusão tão pouco evidente sobre a verdadeira essência do mundo? O caminho
que ele percorreu é fascinante – talvez valha a pena tentar reproduzi-lo aqui,
resumidamente.
A misteriosa janela pela qual
conhecemos o mundo da Vontade é, segundo Schopenhauer, nosso corpo. Entenda-se,
nós também o percebemos como um fenômeno: se olho para baixo, posso ver as
minhas mãos e minhas pernas, do mesmo podo que posso visualizar as mãos e
pernas de outra pessoa. Ou seja, o corpo também é, para nós, representação, do
mesmo modo que tudo o mais de que temos conhecimento.
Porém não é apenas
representação. Nossa relação com o corpo nos permite uma intuição imediata,
diferente das que temos em relação aos outros objetos. É uma ligação íntima,
como se possuíssemos uma consciência firme de nosso próprio ser, como se
pudéssemos conhecer a coisa-em-si de nós mesmos. E, segundo Schopenhauer, é
essa intuição que nos permite entender que o corpo é, na verdade, a objetidade
da Vontade, a manifestação enquanto fenômeno de nossa essência última. Para nós
é fácil perceber, enquanto sujeitos, que somos tanto representação como
Vontade.
O fascinante da filosofia de
Schopenhauer é que ele não se contenta com essa percepção. Tendo descoberto que
a Vontade é o fundamento metafísico de nosso ser individual, o filósofo a
projeta no universo inteiro – esse que se apresenta aos nosso olhos como
imagem, aos nosso ouvidos como som, mas jamais como conhecimento imediato. Ou
seja, a conclusão de Schopenhauer é a de que a Vontade não é apenas o
fundamento dos homens, o sequer dos animais e das plantas, mas de tudo o que
existe: dos astros que se atraem pela lei da gravidade, da bússola que aponta
para o norte por efeito do magnetismo, dos corpos que passam a se movimentar
após um impacto! Resumindo: a Vontade é a coisa-em-si kantiana!
Eu confesso que, pessoalmente,
não estou convencido da legitimidade filosófica desse salto. Não seria isso a
projeção de nossa subjetividade no universo? Não seria uma extrapolação da
consciência humana? Ou seja, não estaria Schopenhauer supondo, sem possuir
fundamento para tanto, que sujeito e objeto possuem, como fundamentação
metafísica, a mesma propriedade?
Mas, se não tenho como provar
que Schopenhauer estava certo, também não tenho como provar que ele estava
errado. E não é fascinante imaginar – nem que apenas como um exercício
intelectual – que ele possa estar certo?
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