Eduardo Siebra, 16/10/13
Na
sétima dimensão, ou seja, numa projeção geométrica de realidade incompreensível
para os seres humanos, vive uma forma de criatura consciente chamada brtrzslyxzhzsgy.
Por mais que tentássemos, jamais conseguiríamos entender seu modo de
existência: suas mentes não estão – como as nossas – amparadas na matéria, mas
sim numa complexa rede relacional de incidências de vibrações no continuum
espaço-temporal. Eles não possuem forma ou extensão – ao menos segundo as
definições humanas destes conceitos – o que significa que aquilo que nós
tentaríamos definir como seus corpos estão, na verdade, dispersos em posições
aparentemente aleatórias, que perpassam diferentes e longínquas regiões do
Cosmos. Na verdade, a idéia de individualidade só é possível aos brtrzslyxzhzsgy
porque eles definem suas próprias consciências – ou seja, sua noção de eu – a
partir de contrastes de uma série ininterrupta de avanços e recuos temporais
das poucas partículas estritamente físicas que estão associadas à sua
existência. Tais séries – que pareceriam aleatórias mesmo aos mais poderosos
computadores já criados pelo homem – seguem, na verdade, um intricado padrão
matemático, e todo brtrzslyxzhzsgy sente-se único justo por intuir que o seu padrão
é singular e irreproduzível.
Só poderíamos nos referir à
comunicação brtrzslyxzhzsgyana por meio de metáforas. Como se sabe, a tremenda
explosão que deu origem ao mundo provocou um eco que até hoje reverbera pelo
universo. A sofisticada mente dos brtrzslyxzhzsgy está praticamente imersa
nessa reverberação, e ela é capaz de reproduzi-la harmonicamente, em padrões
referenciais ligeiramente distintos um dos outros, o que os torna inteligíveis às
mentes dos demais brtrzslyxzhzsgy. Numa simplificação grosseira, poderíamos
tentar explicar dizendo que a língua dos brtrzslyxzhzsgy é uma eterna e
contínua variação sobre a canção de nascimento e morte do mundo.
Por existirem num patamar diferente
da realidade e por possuírem características físicas tão alienígenas, estamos
conceitualmente e absolutamente impedidos de conhecer ou de estabelecer
qualquer forma de comunicação com os brtrzslyxzhzsgy. A verdade é que a todo
instante e em vários lugares manifestações espúrias da consciência brtrzslyxzhzsgyana
perpassam o Planeta Terra sem que nós, humanos, pudéssemos nos dar conta da
proximidade destas criaturas nem eles, brtrzslyxzhzsgy, pudessem suspeitar da
existência de uma sociedade como a nossa neste nível de realidade. Os brtrzslyxzhzsgy
vivem num recorte diferente do universo, e talvez uma descrição das
características de um ser humano para um indivíduo brtrzslyxzhzsgy soasse tão
alienígena quanto nos soa a descrição de seu modo de vida.
Deixando
de lado, porém, os aspectos mais abstrusos a respeito da existência brtrzslyxzhzsgyana,
a verdade é que essas criaturas são muito mais parecidas com nós do que
poderíamos imaginar. O que se entende mais facilmente quando se considera o
caso de Cstrhjshkzlay.
Todos os dias metempsicóticos,
Cstrhjshkzlay vai trabalhar. Ou melhor, para ser verdadeiramente preciso, seria
necessário dizer que Cstrhjshkzlay projeta sua consciência numa determinada
amplitude de vibrações das supercordas, de tal modo que ele pode usar sua
capacidade de concentração e de criatividade para sincronizar seus fluxos
cronológicos com a prospecção de metarreverberações. Num gigantesco organismo formado
por dezenas de milhares de brtrzslyxzhzsgy que vibram em conjunto, pode-se
dizer que as próprias forças fundamentais que constituem o universo são
coletadas, de modo a tornar possíveis os diversos objetivos funcionais da
sociedade brtrzslyxzhzsgyana.
Parece complicado, mas é bem mais
simples – e prosaico – do que soa à primeira vista. Cstrhjshkzlay, na verdade,
anda até um pouco entediado com seu trabalho. Do ponto de vista de seus
colegas, naturalmente, esse enfado é completamente injustificado. Poucos são os
brtrzslyxzhzsgy que tem a oportunidade de ocupar uma função tão interessante
quanto a de coletar as metarreverberações cosmogônicas. Os critérios seletivos
são rigorosos, e apenas as mentes mais aguçadas tem uma chance de conseguir o
emprego. Além disso, o ambiente de trabalho é impressionante, mesmo para os
padrões multiplanares dos brtrzslyxzhzsgy: oscilações ininterruptas de estalos
transcendentais são canalizadas por vigorosas redes plurimentais
intencionalmente elaboradas para literalmente sugar o poder criativo cósmico.
Lapsos momentâneos de ordem e caos absoluto alternam-se seguindo padrões que,
segundo alguns teóricos mais imaginativos, talvez reflitam mensagens gravadas
na própria conformação da realidade. Como resultado, forma-se uma verdadeira
nebulosa de transconsciência, de modo que os brtrzslyxzhzsgy que lá trabalham
têm a oportunidade de se comunicar com entidades inteligentes ou
semi-inteligentes de diferentes ontologias identificadas.
Cstrhjshkzlay, para bem dizer a verdade, acha aquilo tudo um saco.
Naquele dia metempsicótico específico, ele estava especialmente mal-humorado.
– Olá, Cstrhjshkzlay, como vai o
senhor?
– Vou bem, Frgbbnhjktre.
– As antinomias de ontem já estão em
sua tabula rasa.
– Ah, maravilha. Pode deixar que
hoje eu as decifro.
Porcaria! Isso significava que
Cstrhjshkzlay teria um longuíssimo dia fazendo um trabalho árido, obrigando-o a
ficar num estado de concentração forçada que era de encher o saco de qualquer
um.
Cstrhjshkzlay acoplou sua miríade
geométrica ao feixe de pólipos da crisálida e despencou sobre o caleidoscópio.
– Ora merda! – bufou, e contemplou,
mal humorado, o espetacular fluxo de metarreverberações passando diante do
ultrahiperdodecaedro onde ele passava maior parte de sua jornada de trabalho.
Cstrhjshkzlay suspirou e, antes de se debruçar sobre as atinomias, convergiu
suas filigranas sensíveis para um livro – um padrão sintético cognitivo
materializado aprioristicamente, na verdade – que ele havia deixado jogado por
ali.
Criaturas capazes de comunicação e conhecedoras
da noção de individualidade[1],
os brtrzslyxzhzsgy desenvolveram uma rica vivência intelectual. Naquilo que
aproximativamente poderíamos chamar de passado[2],
os brtrzslyxzhzsgy dedicaram-se à contemplação do universo e à reflexão sobre
os mistérios da vida. Muitos livros foram escritos sobre as grandes e profundas
questões, e houve uma era em que se considerava que, para ter uma vida plena,
um brtrzslyxzhzsgy deveria buscar o auto-conhecimento através da reflexão.
Auto-reflexão uma ova! – teria dito
Cstrhjshkzlay, em nosso idioma. Fazia mais de 200 dias metempsicóticos que ele
estava tentando apreender o significado transcendental daquele livro – um
intrincado tratado sobre a possibilidade epistemológica de um conhecimento
inato, ou seja, o equivalente brtrzslyxzhzsgyano da Crítica da Razão Pura. Só
que, por causa do trabalho, ele não tinha nem tempo nem sossego para acompanhar
os intrincados raciocínios.
Na rabugenta opinião de
Cstrhjshkzlay, os brtrzslyxzhzsgy todos estavam praticamente obcecados com a
idéia da prospecção de metarreverberações. Claro, tinha todo aquele lero-lero
de que aquilo tornava a vida mais conveniente, que os brtrzslyxzhzsgy de hoje
viviam muito mais confortavelmente do que antes, com acesso a um quantum muito
maior de metarreverberações. Cstrhjshkzlay não se importava que as outras
pessoas acreditassem naquele monte de abobrinhas, mas justo ele ter que viver a
vida inteira assim, coletando essas malditas metarreverberações! Ele, que tanto
havia sonhado em se tornar um estudioso de psicocosmologia quando era jovem... Tudo bem que ele havia escolhido o emprego, e
que ele era metarreverberativamente bem remunerado pelo seu trabalho. Mas ao
custo de que? Do lócus biônico da
liberdade e da reflexão, ou seja, tudo o que Cstrhjshkzlay mais desejava para
si.
Ele já havia tentado explicar suas opiniões a
alguns de seus amigos mais íntimos. Alguns até concordavam, mas a verdade é que
ninguém gosta de gente resmungona, seja nesta, seja na sétima dimensão. Todos
achavam que Cstrhjshkzlay reclamava de fractal cheio: seu emprego era bom, e se
ele quisesse tanto assim continuar seus malditos estudos de psicocosmologia,
que tivesse ao menos a dignidade de tomar uma decisão e fosse atrás do seu
sonho. Ficar choramingando era que não ia resolver o problema.
“Falar é fácil.” – pensava
Cstrhjshkzlay, quando lhe sugeriam largar o emprego. Ele sabia que se ele
deixasse a firma para estudar psicocosmologia – das disciplinas mais
interessantes e, portanto, mais inúteis jamais concebidas pelos brtrzslyxzhzsgy
– com toda a probabilidade mais cedo ou mais tarde ele teria o mesmo destino de
tantos brtrzslyxzhzsgy desocupados, ou seja, ele iria se amalgamar à transnebulosa
de inação plena. A coisa não tava fácil para ninguém: a sociedade era de tal
modo organizada que, sem uma fonte estável de metarreverberações, um brtrzslyxzhzsgy
era a obrigado a ganhar a vida vendendo partículas quânticas em ângulos agudos.
– Bem, vamos lá... – suspirou
novamente Cstrhjshkzlay, resignando-se ao desinteressante dia que o acaso e sua
falta de colhões lhe havia reservado. Quando se preparava para iniciar a criptosintaxe,
ele ouviu alguém lhe dizer:
– Cstrhjshkzlay, meu velho, tudo
bem?
Era Ztkzwgbtwow.
– Ahn? Ah, oi, Ztkzwgbtwow...
– Você vai para o sbrbles?.
“Que o X’Aarn os devore!”, pensou
Cstrhjshkzlay.
– Ainda não sei, vai depender da
Mngqstrbvca.
– Ah, pode deixar que eu falo com
ela. Não aceito desculpas, quero os dois lá, hein?
– Não se preocupe, vou fazer o
possível para ir.
– Pra que trabalhar tanto se não se
pode sbrblar com os amigos, não é?
– É verdade.
Assombrados por visões de
desagregação cósmica, Cstrhjshkzlay pensou que talvez ele estivesse precisando
de férias. Férias no Grande Vortex Primordial – não era pra lá que Mngqstrbvca
queria ir? Talvez fosse interessante mesmo, todo mundo falava que era realmente
uma viagem inesquecível. Ou talvez eles pudessem contemplar a orla do X’Aarn, o
que definitivamente seria uma experiência muito mais emocionante – perigosa,
inclusive.
Mas será? Será que um intervalo de
sossego resolvia o problema? Cstrhjshkzlay estava desestimulado com sua rotina,
e interrompê-la poderia ser, se muito, uma fuga temporária.
Cstrhjshkzlay vasculhou seu entorno
ontológico com suas filigranas sensíveis. A velha bagunça de sempre – um
coágulo de pontos fixos no infinito que Mngqstrbvca lhe havia dado de presente,
o feixe de ângulos hiperdimensionais que ele havia prometido a si mesmo
organizar meses metempsicóticos atrás, e sua coleção de livros, logo atrás do
imperativo moral que ele era administrativamente obrigado a pendurar na parede
teleológica.
Cstrhjshkzlay tinha praticamente uma coleção
completa de filosofia brtrzslyxzhzsgyana no seu ultrahiperdodecaedro. Eram
algumas dos principais testemunhos intelectuais de sua espécie – verdadeiros
monumentos do antigo amor dos brtrzslyxzhzsgy ao conhecimento. Será que algum
dia ele teria tempo de lê-los? Como, se ele passava a vida inteira coletando
metareverberações?
Metareverberações... Sim, dá para
fazer muita coisa com metareerberações. Mas a verdade é que a maior parte dos brtrzslyxzhzsgy
do passado tinha vivido suas vidas inteiras sem jamais precisar de uma única
maldita metareverberação! Isso, claro, mudou radicalmente depois da ivenção do
motor à metareverberação, durante a revolução trigonométrica, mas o que Cstrhjshkzlay
tinha a ver com isso? Ele não havia escolhido as prioridades idiotas de seu
mundo: por que, então, deveria se conformar a elas?
Largar tudo... Será? Será que ele conseguiria,
depois de ter se acostumado ao estilo de vida que tinha? E o que Mngqstrbvca
iria dizer? E se depois ele se arrependesse?
Ah, reclamar não resolvia o seu
problema! Por sinal, ele não podia terminar aquele dia sem decifrar a porcaria
das antinomias em sua tábula rasa. Era preciso deixar de pensar em suas
angústias e se concentrar no trabalho. Ele contraiu suas filigranas, reverteu
sua entropia marginal e respirou fundo.
Vamos lá. Vejamos. A primeira
antinomia dizia mais ou menos assim: “O que é, não é.”
– O que é, não é. – repetiu Cstrhjshkzlay, em
voz alta, ou o que quer que corresponda a isso no universo brtrzslyxzhzsgyano.
Aquela proposição, por alguma razão que não conseguia entender, o deixou ainda
mais triste.
“Se o que é, não é” – pensou
Cstrhjshkzlay, iniciando sua rigorosa análise criptosintática – “então eu não
apenas não sou um brtrzslyxzhzsgy, como eu tenho um trabalho interessante, que me
satisfaz profundamente. Afinal, poder fazer parte da prospecção das
metarreverberações é uma atividade útil e digna, sob os mais diferentes
aspectos. Eu estou dando uma contribuição importante e insubstituível à
sociedade, e isso por si só é o bastante para dar um sentido à minha vida.”
Ele parou, olhou para o imperativo
categórico na parede teleológica e continuou:
“Eu faço o que eu faço porque eu
quero. Foi um exercício de liberdade que me colocou nesta situação, e sendo
assim eu não tenho do que reclamar. Eu gosto dos meus colegas de trabalho, eu
gosto da Frgbbnhjktre, gosto até mesmo do Ztkzwgbtwow. O Ztkzwgbtwow não é um
tremendo filho da puta. Tenho que parar de ser resmungão.”.
O segredo da antinomia parecia estar
aos poucos se revelando para Cstrhjshkzlay.
“Ser protagonista do próprio destino
não é uma pré-condição da felicidade. O auto-conhecimento não torna as pessoas
necessariamente melhores, e tudo o que podemos esperar da vida é fazer o melhor
com aquilo que nos foi dado. É um erro imaginar que um brtrzslyxzhzsgy possa ir
de encontro ao seu destino, ou criar uma realidade nova. A arte de viver é a
arte de fazer o possível. A prospecção das metarreverberações é uma atividade
útil e digna. Quando voltarmos á desagregação primordial de que saíram nossas
consciências, as escolhas que tenhamos feitos ao longo de nossas vidas não
farão a menor diferença, desde que nós tenhamos deixado uma marca no coração
das pessoas.”
É isso. Cstrhjshkzlay era bom em
criptosintaxe, por isso ele havia conseguido aquele cargo. A primeira antinomia
estava resolvida. Ele registrou, no grande aparato de ampolas cibernéticas
retroflexas, a resposta para o problema:
“O que é, é”.
Cstrhjshkzlay pôs a antinomia
resolvida em seu escaninho de saída e pegou a próxima na pilha.
“O que será, não será.”
– Essa é mais difícil. – murmurou
Cstrhjshkzlay, com seus botões, antes de continuar sua análise
criptosintática. – Será um longo dia...
[1] Ao
contrário, por exemplo, do terrível e tenebroso X’Aarn, que confunde sua própria existência com a do
universo inteiro e que, por isso, deseja devorar tudo o que existe para trazer
de volta toda diferenciação indesejada para o conforto eterno da morte que há
dentro de si.
[2]
Observe-se, aqui, que a noção de passado para os brtrzslyxzhzsgy não está
relacionada, como para nós, ao fluxo da entropia, ou seja, à passagem do tempo,
mas sim a uma noção de profundidade definida em relação ao que a mente brtrzslyxzhzsgy
entende como o coração quintessencial do Ser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário