No trabalho,
confesso que, enquanto meus colegas descabelam-se para salvar o mundo, sou, por
razões que me são alheias, assaltado por todo tipo de pensamento
despropositado. O de hoje foi: será que
seria possível escrever um texto sobre absolutamente nada?
Refiro-me aqui, obviamente, não ao
conceito hipotético de um nada filosófico, que poderia ser usado para provar,
de forma apodítica, a existência de algo e, conseqüentemente, de um mundo.
Também não estou falando do conceito budista de nada (ou vazio) – a verdadeira
essência de uma realidade que, embora ilusória, se nos apresenta com todos os
atributos que um homem prático costuma associar à noção de concretude.
Refiro-me a um texto sobre nada, ou seja, um ensaio, relato ou tese que –
embora aparentemente cumprisse todos os requisitos formais indispensáveis à
inteligibilidade – fosse completamente destituído de mensagem.
Não esqueçamos, afinal, que um texto
é um ato de comunicação e que, como tal, pressupõe não só a existência de um
emissor, de um código, de um meio de transmissão e de um receptor, mas também
de uma mensagem a ser enviada. Será concebível um texto que tivesse todos esses atributos, e que se conformasse às
regras da coesão e da coerência, mas que ainda assim não possuísse nenhuma
mensagem?
Respondei-me, ó deuses da retórica e
da linguagem, se tal façanha é possível aos mortais! Dizei-me se criatura
humana – não herói nem semideus, mas homem como os que labutam de sol a sol,
que nascem, crescem, aprendem um idioma e desenvolvem suas aptidões, procurando
a todo custo libertar-se das amarras cognitivas que se interpõem entre eles e o
verdadeiro saber – poderia alguma vez, num ato de deliberada rebeldia às
convenções da linguagem, escrever sobre coisa nenhuma!
Se tal forma de texto fosse possível,
quais seriam as suas características? Será que ficaria evidente, desde a
primeira frase, sua completa falta do que dizer? Ou será que o autor
conseguiria valer-se de algum prodigioso recurso argumentativo para prender a
atenção de seus leitores – e, quem sabe, ao menos por alguns parágrafos, evitar
que eles percebessem a total vacuidade que se oculta em cada um de suas
afirmações? E, tendo o leitor percebido o engano, será que ele se aborreceria,
ao sentir-se enganado pelo que poderia parecer uma forma primitiva de fraude?
Ou tomaria ele o empreendimento todo como uma brincadeira, comprazendo-se,
assim, com a jovialidade que levou alguém a redigir peça tão disparatada? É
imperioso reconhecer que, mesmo que soubéssemos a resposta para tão graves
perguntas, ainda assim jamais poderíamos afirmar categoricamente se os
leitores, tendo se dado conta do engano, deixariam o texto de lado ou
continuariam lendo até o final, quem sabe na vã esperança de identificar um
deslize, uma informação não-intencional que o autor haveria deixado escapar –
contradizendo, desse modo, o supremo objetivo que se havia proposto ao escrever
sua obra.
As questões que menciono no
parágrafo anterior, embora sejam sem sombra de dúvida curiosas, escapam ao
problema fundamental do debate, quero dizer, à determinação da possibilidade
ontológica (do grego ὤν, ὄντος ente, particípio presente
do verbo εἰμί, ser;
e -λογία, ciência, estudo,
teoria) do texto a que venho me referindo – através de diferentes sinônimos e
perífrases – desde o primeiro parágrafo. Para enfrentar a questão sem quaisquer
circunlóquios – desses que soem ser tão comuns e trabalhos acadêmicos de
cientistas sociais e memorandos escritos por burocratas – será preciso
imaginar-se na pele de um grande lingüista, ou
seja, um grande intelectual, desses capazes de entender distinções sutis e absolutamente
imprescindíveis ao pleno entendimento do fenômeno lingüístico humano
(distinções como as de significante e significado, língua e fala, sincronia e
diacronia, sintagma e paradigma – para nos restringir aos exemplos mais
proeminentes). Não, claro, que eu esteja imaginando que eu fosse efetivamente
assumir a identidade dos referidos lingüistas – pois, em que pese o sucesso
editorial da profusão de livros psicografados que invadem as nossas livrarias,
desde pelo menos a primeira década do século XX os métodos da metempsicose
caíram em irremediável descrédito. Refiro-me, na verdade, a um exercício
intelectual de imaginar o que esses grandes acadêmicos pensariam caso tivessem,
com a sua inteligência e com os conhecimentos que adquiriram ao longo de seus
estudos, refletido sobre a questão. Sei perfeitamente do abismo que separa as
mentes humanas – e não é, paradoxalmente, a linguagem o único instrumento que
possuímos com a aptidão de encurtar esse abismo? – mas, para os efeitos que nos
interessam, não creio ser despropositado, feitas as ressalvas epistemológicas
necessárias, eu poder imaginar-me na pele dos ditos pensadores.
Por
mais engenhoso que esse expediente possa parecer, a ele se interpõe um
obstáculo intransponível, que é o fato de eu mesmo não possuir nem os
conhecimentos nem a inteligência dos lingüistas que mencionei. Como proceder,
então?
Homem
profundamente avesso aos arrodeios verbais, não aborrecerei o leitor
desenvolvendo cada um dos doze procedimentos heurísticos que desenvolvi hoje,
ruminando o almoço e a questão. Basta
dizer que, excetuando-se o método nomológico-dedutivo – que fui obrigado a
abandonar em razão de certas nuances da legislação austríaca sobre propriedade
intelectual – a única abordagem que se mostrou minimamente apta a comprovar a
possibilidade ontológica de um texto sem conteúdo foi a empírica. Ou seja, se
alguém se mostrasse capaz de escrever um texto dessa natureza, sua existência
seria a sua própria prova – o que ilustraria magnificamente a clássica
tautologia “existo, logo existo”.
Resta
saber que tipo de farsante sem consciência, que laia de desocupado, que tipo de
mente pervertida e inconseqüente teria a empáfia, a audácia, a ousadia (porém
não a pachorra, já que tem este vocábulo sentido diverso do que pretendo
expressar) de dedicar o tempo que fosse de sua vida – ou, pior ainda, o tempo
que poderia estar sendo dedicado, ao estudo, ao trabalho, ou à salvação do
mundo (como estão dedicando, nesse instante, meus nobres colegas) – a uma
atividade que não é nem edificante nem esteticamente proveitosa, e que não
acrescentaria ao já confuso público instruído desse alvorecer do século XXI
nada além da consciência da frivolidade da vida e da intrínseca maldade da
natureza humana.
Diria
que mil vezes maldito deveria ser tal escritor, se não tivesse acabado de
chegar à minha mesa um documento que me obrigará a trabalhar e a deixar sem
resposta a grave questão que apresentei.
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