quarta-feira, 22 de maio de 2013

Sobre as Coisas Todas e Tal



No trabalho, confesso que, enquanto meus colegas descabelam-se para salvar o mundo, sou, por razões que me são alheias, assaltado por todo tipo de pensamento despropositado.  O de hoje foi: será que seria possível escrever um texto sobre absolutamente nada?
            Refiro-me aqui, obviamente, não ao conceito hipotético de um nada filosófico, que poderia ser usado para provar, de forma apodítica, a existência de algo e, conseqüentemente, de um mundo. Também não estou falando do conceito budista de nada (ou vazio) – a verdadeira essência de uma realidade que, embora ilusória, se nos apresenta com todos os atributos que um homem prático costuma associar à noção de concretude. Refiro-me a um texto sobre nada, ou seja, um ensaio, relato ou tese que – embora aparentemente cumprisse todos os requisitos formais indispensáveis à inteligibilidade – fosse completamente destituído de mensagem.
            Não esqueçamos, afinal, que um texto é um ato de comunicação e que, como tal, pressupõe não só a existência de um emissor, de um código, de um meio de transmissão e de um receptor, mas também de uma mensagem a ser enviada. Será concebível um texto que tivesse todos esses atributos, e que se conformasse às regras da coesão e da coerência, mas que ainda assim não possuísse nenhuma mensagem?
            Respondei-me, ó deuses da retórica e da linguagem, se tal façanha é possível aos mortais! Dizei-me se criatura humana – não herói nem semideus, mas homem como os que labutam de sol a sol, que nascem, crescem, aprendem um idioma e desenvolvem suas aptidões, procurando a todo custo libertar-se das amarras cognitivas que se interpõem entre eles e o verdadeiro saber – poderia alguma vez, num ato de deliberada rebeldia às convenções da linguagem, escrever sobre coisa nenhuma!
            Se tal forma de texto fosse possível, quais seriam as suas características? Será que ficaria evidente, desde a primeira frase, sua completa falta do que dizer? Ou será que o autor conseguiria valer-se de algum prodigioso recurso argumentativo para prender a atenção de seus leitores – e, quem sabe, ao menos por alguns parágrafos, evitar que eles percebessem a total vacuidade que se oculta em cada um de suas afirmações? E, tendo o leitor percebido o engano, será que ele se aborreceria, ao sentir-se enganado pelo que poderia parecer uma forma primitiva de fraude? Ou tomaria ele o empreendimento todo como uma brincadeira, comprazendo-se, assim, com a jovialidade que levou alguém a redigir peça tão disparatada? É imperioso reconhecer que, mesmo que soubéssemos a resposta para tão graves perguntas, ainda assim jamais poderíamos afirmar categoricamente se os leitores, tendo se dado conta do engano, deixariam o texto de lado ou continuariam lendo até o final, quem sabe na vã esperança de identificar um deslize, uma informação não-intencional que o autor haveria deixado escapar – contradizendo, desse modo, o supremo objetivo que se havia proposto ao escrever sua obra.
            As questões que menciono no parágrafo anterior, embora sejam sem sombra de dúvida curiosas, escapam ao problema fundamental do debate, quero dizer, à determinação da possibilidade ontológica (do grego ν, ντος ente, particípio presente do verbo  εμί, ser; e -λογία, ciência, estudo, teoria) do texto a que venho me referindo – através de diferentes sinônimos e perífrases – desde o primeiro parágrafo. Para enfrentar a questão sem quaisquer circunlóquios – desses que soem ser tão comuns e trabalhos acadêmicos de cientistas sociais e memorandos escritos por burocratas – será preciso imaginar-se na pele de um grande lingüista, ou seja, um grande intelectual, desses capazes de entender distinções sutis e absolutamente imprescindíveis ao pleno entendimento do fenômeno lingüístico humano (distinções como as de significante e significado, língua e fala, sincronia e diacronia, sintagma e paradigma – para nos restringir aos exemplos mais proeminentes). Não, claro, que eu esteja imaginando que eu fosse efetivamente assumir a identidade dos referidos lingüistas – pois, em que pese o sucesso editorial da profusão de livros psicografados que invadem as nossas livrarias, desde pelo menos a primeira década do século XX os métodos da metempsicose caíram em irremediável descrédito. Refiro-me, na verdade, a um exercício intelectual de imaginar o que esses grandes acadêmicos pensariam caso tivessem, com a sua inteligência e com os conhecimentos que adquiriram ao longo de seus estudos, refletido sobre a questão. Sei perfeitamente do abismo que separa as mentes humanas – e não é, paradoxalmente, a linguagem o único instrumento que possuímos com a aptidão de encurtar esse abismo? – mas, para os efeitos que nos interessam, não creio ser despropositado, feitas as ressalvas epistemológicas necessárias, eu poder imaginar-me na pele dos ditos pensadores.      
            Por mais engenhoso que esse expediente possa parecer, a ele se interpõe um obstáculo intransponível, que é o fato de eu mesmo não possuir nem os conhecimentos nem a inteligência dos lingüistas que mencionei. Como proceder, então?
            Homem profundamente avesso aos arrodeios verbais, não aborrecerei o leitor desenvolvendo cada um dos doze procedimentos heurísticos que desenvolvi hoje, ruminando o almoço e a questão.  Basta dizer que, excetuando-se o método nomológico-dedutivo – que fui obrigado a abandonar em razão de certas nuances da legislação austríaca sobre propriedade intelectual – a única abordagem que se mostrou minimamente apta a comprovar a possibilidade ontológica de um texto sem conteúdo foi a empírica. Ou seja, se alguém se mostrasse capaz de escrever um texto dessa natureza, sua existência seria a sua própria prova – o que ilustraria magnificamente a clássica tautologia “existo, logo existo”.
            Resta saber que tipo de farsante sem consciência, que laia de desocupado, que tipo de mente pervertida e inconseqüente teria a empáfia, a audácia, a ousadia (porém não a pachorra, já que tem este vocábulo sentido diverso do que pretendo expressar) de dedicar o tempo que fosse de sua vida – ou, pior ainda, o tempo que poderia estar sendo dedicado, ao estudo, ao trabalho, ou à salvação do mundo (como estão dedicando, nesse instante, meus nobres colegas) – a uma atividade que não é nem edificante nem esteticamente proveitosa, e que não acrescentaria ao já confuso público instruído desse alvorecer do século XXI nada além da consciência da frivolidade da vida e da intrínseca maldade da natureza humana.
            Diria que mil vezes maldito deveria ser tal escritor, se não tivesse acabado de chegar à minha mesa um documento que me obrigará a trabalhar e a deixar sem resposta a grave questão que apresentei.

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