Numa tarde de
sábado, quando caminhava pelas bandas da 302 Norte na vã esperança de, ao
queimar calorias indesejadas, aumentar minhas chances de sexo casual, vi um
mendigo esfarrapado aos berros, proferindo um sermão a dois ou três desocupados
que se dignaram a ouvi-lo naquele calor. Julguei que fosse um daqueles loucos
barulhentos, que brigam sozinhos no meio da rua e soltam palavrões contra entidades
malignas invisíveis.
Aproximei-me curioso e meio entristecido,
supondo que a figura sofresse de algum delírio, porém, ao me juntar, por
curiosidade, ao seu
público, surpreendi-me com a concatenação de seus vitupérios. Mesmo sendo um
orador furioso, ele profetizava com tensão bíblica.
Se eu fosse tentar, de cabeça,
reproduzir o que aquele desgrenhado profeta urbano bradou-nos, talvez saísse algo assim:
“Engana-se quem acha que merecerá o Reino dos Céus por amar o inimigo. Pois disso é capaz qualquer
masoquista, e não é o Senhor das Trevas a prova da elegância que há no mal?
Sim, amar o criminoso é fácil, e o
ódio que lhe lançamos publicamente é, na verdade, a prova do amor inconsciente que
lhe reservamos. Pois vemos nos injustos nossa própria intimidade sombria,
nossos desejos e pecados reprimidos transformados em realização por uma falta
de restrições que invejamos.
Ai de ti, Brasília, pois eis que vos
fala um conhecedor dos homens. A porta estreita, a verdadeira prova que nos
fará dignos da redenção eterna é o perdão ao imbecil, pois nada além do Amor
Universal e da visão beatífica da Obra Divina poderia justificar tolerância a
criaturas que trazem ao próximo tanto dano quanto o injusto, mas sem pelo menos
o atenuante do charme.
Abençoados os que amam o adolescente narcisista e frívolo, que considera sua
indiferença e irresponsabilidade a prova de uma compreensão superior sobre os
mistérios da vida.
Abençoados os que perdoam as madames endinheiradas
e militantes, que põem à prova a paciência dos comensais que se arriscam a
almoçar com elas dissertando longamente sobre sua vida sexual, na desesperada tentativa de atestar a liberdade e a felicidade que nunca possuirão.
Abençoados os que precisam
conviver com profissionais oportunistas, que confundem a estreiteza de sua
visão com pragmatismo, e que condenam, com a crueldade dos cegos, todos os que
não escolheram para si as mesmas prisões mentais.
Abençoados os que são obrigados a
seguir as decisões de um superior hierárquico sem mérito, que condescende em
seus vícios infantis pela falta de quem esteja em posição de lhe mostrar a
objetividade que há no bom senso e na prudência, e que confundem o próprio
poder com a racionalidade de suas opiniões.
Abençoado os que tem de provar –
para escapar de uma solidão irremediável – a própria masculinidade através da estupidez
induzida, para serem aceitos por manadas de eternas crianças que, pela
transgressão, pelo insulto e pela indulgência, provam ao mundo o contrário do
que queriam provar, ou seja, que são miseráveis dando vazão ao desamparo através da violência.
Abençoados os que deram o braço a
torcer quando tinham razão, simplesmente por não poderem gritar tão
alto quanto aqueles com quem colaboravam, e que ainda assim tiveram a decência
de não exercer direito a que faziam jus – o de mandar todos tomarem no cu.
Abençoados sejam os que foram
perseguidos por pessoas menos inteligentes por não terem querido sacrificar a
única vida que tinham no altar do Baal do Banal.
Abençoados os sóbrios, os que pensam
duas vezes antes de falar uma merda, os que não aboliram a lógica pelo
pregão das ideologias furadas, os que se dão ao trabalho de estudar os
antecedentes, os que não crucificam os bodes expiatórios com gosto de sangue na
boca, os que, por mansidão, calaram.
Acima de tudo, abençoados os que tem bom gosto musical, mas que deixaram
os amigos colocar o CD de forró eletrônico.
Pois em verdade vos digo, apenas de quem for capaz de perdoar um imbecil será o Reino dos Céus!”.
Tendo escutado o sermão, continuei minha caminhada cabisbaixo, assombrado
por visões da danação eterna.
Magnífico texto, ainda que seja a tentativa de reprodução das palavras ouvidas, vem tecido com a força e a energia com que foi captado, absorvido, assimilado. Gratidão
ResponderExcluirAna Brito
Obrigado pelo comentário. Às vezes tenho a impressão de que jogo meus textos num grande abismo. Quando alguém o lê, sinto uma grata surpresa.
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