Intérpretes mais otimistas costumam
considerar a Lei de Murphy de uma perspectiva lógica: “se alguma coisa pode dar
errado, ela forçosamente dará errado, desde que tenha tempo o suficiente para
isso”. O que não quer dizer que ela dará errado na primeira ou mesmo na segunda
tentativa.
Qualquer observação minimamente
realista sobre o Mundo e a posição que o ser humano ocupa nele mostra-nos que
não, que a Lei de Murphy está gravada na conformação do real, do mesmo modo,
por exemplo, que a Lei da Gravidade. Como muito bem argumentou o Príncipe
Sidarta Gautama, o Cosmos é uma gigantesca máquina de infligir sofrimentos, e o
fato de sermos criaturas conscientes torna-nos, por excelência, os atores e
espectadores das desgraças da vida.
É claro que, do nosso ponto de
vista, enquanto coágulos de matéria aptos à dor, quanto mais pudermos nos
livrar do sofrimento, melhor. Afinal, já que não escolhemos as condições em que
iríamos viver – pelo menos até onde vai nosso conhecimento! –, é justo desejar
a tranqüilidade possível num universo que tende ao mal.
Como ex-habitante de Recife,
graduado em Direito e diplomata, estou profundamente familiarizado com todas as
formas de desgraça que podem se abater sobre um mortal. Esse conhecimento
empírico do sofrer me permitiu desenvolver certas intuições que se mostraram
muitos úteis em minha busca pela tranqüilidade possível.
Por exemplo, é uma verdade notória
que muito raramente o universo concentra toda a maldade que tem reservada para
uma pessoa em apenas uma modalidade de aborrecimento. Somos a todo tempo
assediados por problemas de diversas ordens, sem relação aparente entre si, mas
que se acumulam e se compõem para formar o quadro de nossa miséria – mais ou
menos como quando a privada entope no mesmo dia em que esquecemos de pagar o
boleto do condomínio. O Universo está à espreita, e tudo de que ele precisa é
de uma deixa para nos assolar com abacaxis no trabalho e discussões de
relacionamento.
Uma pessoa inteligente pode usar
essa característica do Cosmos a seu favor, e estou convencido de que bastará um
exemplo simples para esclarecer essa afirmação aparentemente
contra-intuitiva.
Imagine-se a cena de um assalariado que tenta
voltar para casa no horário do rush.
Faminto e exausto, tudo que ele mais deseja é voltar para casa, tirar a roupa
social – que lhe apertava todos os meridianos identificados pela medicina
chinesa – e despencar no sofá. É do interesse do Plano Geral das Coisas,
todavia, que ele passe horas preso no engarrafamento, com calor, sem ter mais o
que fazer além de escutar a “Voz do Brasil”. Se alguém será atropelado, se um
esgoto irá estourar ou se haverá uma enchente, não importa. O certo é que o
Cosmos encontrará alguma maneira de congestionar ainda mais o trânsito,
aumentando, assim, a pressão arterial do trabalhador. É a Lei de Murphy em ação.
A maneira mais inteligente de
escapar dessa enrascada é tentar usar o tempo de engarrafamento para fazer
alguma coisa relevante como, por exemplo, mandar uma mensagem de celular
extensa para a namorada. Minhas observações empíricas mostraram que, não
importa quão longo seja o engarrafamento, se o motorista começa a escrever uma
mensagem no celular, o carro da frente invariavelmente avança. É um fenômeno
cosmológico ainda pouco estudado pelos físicos, uma intervenção subjacente da
Lei de Murphy que compensa os efeitos do aborrecimento original. Toda vez que o
motorista tentar continuar digitando sua mensagem no celular, o carro da frente
andará mais um pouquinho, o que o forçará a interromper o que estava escrevendo.
Se o seu principal objetivo fosse efetivamente mandar a mensagem, a Lei de
Murphy estaria consumada, e tratar-se-ia de mais um aborrecimento para o rol
das misérias daquele indivíduo. Mas se seu principal objetivo for chegar logo
em casa, então o sofrimento secundário pode ser uma excelente maneira de
amenizar os efeitos do problema inicial.
E assim, com pequenos avanços,
redigindo e apagando uma longa mensagem, é possível avançar quilômetros pelo
coração das mais congestionadas metrópoles. O Universo ficará confuso, e não saberá
exatamente onde deverá concentrar sua má-vontade. O gesto do motorista que
tenta redigir algo no telefone – um esforço que exige concentração – não pode ser
ignorado por uma entidade que existe para aborrecer. Ainda que lhe interesse
manter o trabalhador preso no engarrafamento, é tentador demais atrapalhar
aquele gesto concentrado, aquela tentativa de comunicação possivelmente tão
importante. Pode ser que ele esteja tentando transmitir uma informação a alguém
que esteja em perigo, ou talvez ele esteja avisando outra pessoa para não vir
por aquele caminho engarrafado. Não, é preciso atrapalhar! Andem os carros!
Esse é um dos exemplos mais
emblemáticos, porém são várias, na verdade, as formas de usar as leis do Cosmos
a nosso favor. Por exemplo, se alguém está fazendo um exame e percebe que
faltam apenas dez minutos para acabar a prova, sendo que ainda faltam várias
questões a serem respondidas, não resta dúvidas sobre o que fazer: é preciso
apertar o cinturão, abotoando-o num furo três ou quatro vezes mais apertado do
que aquele que se costuma usar. Isso criará uma sensação de desconforto
terrível, verdadeira tortura nas entranhas que fará o Universo desacelerar a
passagem do tempo, de forma a prolongar o sofrimento. Assim, o aluno que faz a
prova terá muito mais tempo para responder as questões, ainda que tenha que
tomar cuidado para não deixar a dor atrapalhar sua concentração. Se nem isso
funcionar, e a pessoa perceber que faltam dois minutos para o fim da prova,
sempre se pode apelar para estratagemas radicais, como, por exemplo, puxar a
cueca por trás da calça, de tal modo que ela fique enfiada nos fundilhos. Esse
paroxismo do desconforto multiplicará o tempo por dez, e possibilitará que as
questões que faltavam sejam respondidas.
O uso da Lei de Murphy em favor
próprio é uma estratégia que só encontra paralelo, em termos de eficácia, no
uso da psicologia reversa contra o Universo[1]. É
preciso apenas ter algumas precauções, pois, como se sabe, entre as dimensões
visíveis habitam platelmintos colossais e sem mente, que esperam apenas uma
oportunidade para devorar a alma dos mortais que infrinjam alguma lei
fundamental do Ser. É importante não permitir que a realidade se dê conta do
engodo, ou seja, deve-se sempre dar sinais de que se está, efetivamente,
sofrendo. Caso contrário, não se surpreenda se um rasgo no tecido do real
aparecer enquanto você digitava uma mensagem durante o engarrafamento, e cílios
prolongados arrastarem-no para um abismo gélido além da soleira do tempo, onde
seu cérebro será devorado por ectoparasitas trematódios!
[1] Como se
sabe, nada reduz tanto a probabilidade de que algum evento favorável aconteça
quanto demonstrações de grande desejo dadas por uma pessoa. O universo tem uma
psicologia aparentada com a de uma criança, e está disposto a conceder um
benefício apenas nos casos em que acha que um indivíduo não deseja aquilo, ou
deseja algo exatamente oposto.
Esse exemplo do engarrafamento é verdadeiro, mas só mostra como o Universo, imerso em sua própria má vontade, não pensa em soluções alternativas. O ideal seria fazer com que um guarda de trânsito se aproximasse, te multasse e, portanto, te impedisse de mandar a mensagem. Durante esse processo, o carro da frente não se moveria nem um centímetro, é claro.
ResponderExcluirPara você ver que o Universo também não é essas coisas todas, ao contrário do que comumente se alardeia!
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