A atual
superlotação do Averno é apenas uma das muitas manifestações de um problema de
base, quer dizer, a irracionalidade do Sistema Punitivo Universal (SPU).
Instituído no primeiro manvantara para assegurar os princípios da justiça retributiva
cósmica, o SPU teve o mérito de conciliar estímulos positivos – a possibilidade
de ir para o Paraíso – com as sanções propriamente infernais. Porém, no plano
dos fatos a promessa de salvação revelou-se ilusória – a não ser para um
privilegiado grupo de falecidos antes da puberdade – e do um ponto de vista de
uma administração cósmica minimamente racional, o sistema tem se mostrado
perfeitamente ineficaz.
Mesmo se analisarmos o problema a partir de uma ótica
retributiva – tão característica do discurso de intelectuais teocêntricos e
paraisocêntricos – o SPU se revela como uma estrutura burocrática incapaz de
implementar seus objetivos mais elementares. O fato de se atribuir uma mesma
pena – a danação eterna – para uma amplíssima gama de pecadores, distorce os
incentivos dos atores e subverte a lógica da virtude. Tratar um tirano com o
mesmo rigor que um intelectual marxista, por exemplo, representa uma inversão
completa da idéia de meritocracia. Além disso, a inexistência de dosimetria no
momento da danação faz com que pequenos pecadores – como cangaceiros e campeões
de vale tudo – permitam-se pecados cada vez maiores, como os que são típicos
entre os ativistas de direitos humanos. Este fato, associado à característica
do SPU de condenar uma amplíssima gama de condutas corriqueiras, porém
consideradas nocivas – como a mera manifestação do desejo de comer as primas ou
a mulher do próximo – gera um círculo vicioso em que esculhambação leva à
esculhambação.
O problema, todavia, torna-se tão mais grave quando o
analisamos a partir de uma ótica ressocializadora – mais em sintonia com o
Direito Penal Cósmico da Era de Aquarius. Como se sabe, as almas condenadas não
tornam a encarnar, e em princípio elas deveriam padecer de sofrimentos indescritíveis
ad infinitum, até que o Tempo dobrasse sobre si mesmo e os suplícios
recomeçassem. Ora, é flagrante que um tal arranjo não tem a menor preocupação
de reintegrar o condenado à Ordem Universal das Coisas, sendo, na verdade,
pouco mais do que a manifestação de uma Vingança Cósmica sanguinária e hostil
ao livre-arbítrio. Como resultado, o Inferno tornou-se célebre por difundir
maus hábitos e conhecimentos criminógenos entre sua população, o que muitas
vezes gera péssimos spillovers para a Terra através de sessões espíritas
e jogos de ouija.
A grande
verdade é que o Inferno e o SPU caíram em descrédito no imaginário moderno.
Como demonstram os sociólogos da danação, o homem peca sobretudo por imitação.
Durante a Idade Média, quando os padrões morais e metafísicos eram muito mais
estritos, poucos, com a notória exceção dos sacerdotes católicos, se arriscavam
a pecar abertamente. Nos dias de hoje, por sua vez, o indivíduo médio observa
seus vizinhos pecando e pensa consigo mesmo: “Ora, se Sicrano e Beltrano estão
fazendo isso, então eu também vou fazer!”. E mesmo quando algum sacerdote lhe
fala dos riscos dos tormentos infernais, ele se limita a retrucar: “Se Fulano
também vai para o Inferno, nem me incomodo tanto de ir também”. Como resultado,
assistimos hodiernamente a uma pandemia de pecados nefandos, tais como o
adultério, a pedofilia e o relativismo metodológico nas ciências sociais.
Da forma como
está atualmente organizado, o SPU é favorável apenas às elites exclusivistas do
Paraíso. Ao direcionar um enorme contingente de almas para a Periferia dos
Cosmos, este arranjo permite que as regiões centrais do Universo mantenham seus
altos Índices de Desenvolvimento Angelical. Encasteladas em condomínios
fechados e dirigindo carruagens douradas puxadas por corcéis de fogo, a elite
dos serafins, querubins e mulheres frígidas gozam de uma série de privilégios
que estão muito além do alcance da grande totalidade dos mortais – possuidores
que são de uma passagem só de ida para o grande Fosso das Dimensões. Segundo as
estatísticas do Banco Universal, o PIB do Paraíso é quase duzentas vezes maior
do que o Inferno, enquanto que a população deste é cinqüenta milhões de vezes
maior. Se fôssemos aplicar o índice de Gini ao Universo como um todo, seríamos
obrigados a reconhecer que vivemos num Cosmos profundamente desigual.
Há grave déficit de recursos diabólicos. |
Se quisermos
viver numa totalidade verdadeiramente justa, a ineficácia do Sistema Punitivo
do Inferno precisa ser trazida à tona nos debates civis e angelicais. Ainda que
Leibniz tenha anunciado que vivemos no melhor dos mundos possíveis, é preciso
reconhecer que algumas singelas reformas podem contribuir para aprimorar o
desempenho das instituições cósmicas, e tornar nossa realidade mais próxima de
um ideal igualitário de Universo, em que anjos, diabos e mortais desempenham
seus papéis sem se ressentirem da dotação relativa de recursos.
Duds, como faço pra seguir teu blog? *lesada*
ResponderExcluirBtw, vou compartilhar esse texto no facebook, porque o mundo precisa lê-lo! :P
Na barra lateral eu coloquei uma opção "Seguidores". Você não tá conseguindo acessar?
ExcluirUsando outro e-mail, eu consegui virar seguidor através do próprio site do Blogger. Vc tem conta lá, né? É asó acessar e adicionar a página do blog.
ExcluirExcelente! Londa vida ao blog.
ResponderExcluirValeu! Tenho pencas de material já pronto, então acho que dá para manter alguma regularidade nas publicações.
ExcluirTambem gostei do texto.
ResponderExcluirTexto bem interessante, sob vários aspectos. Para se repensar alguns problemas sociais de nosso mundo material e para repensar conceitos tradicionais das religiões institucionalizadas.
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